Da água
Água, surpresa líquida e celeste
visita antiga e repentino adeus
à terra embevecida (o vento-leste,
a leva e traz, nos desvarios seus).
Água pesada (látego dos céus) ,
golpeando o chão rude do Nordeste
e invadindo as terras dos heréus
dos arredados chapadões do agreste.
Água distante dos invernos tardos
nômade água do sertão sedento
salpicando de verde os solos pardos.
Água do rio, em curvo movimento
lavando as rugas desses morros áridos
que o Jaguaribe enxuga, à mão do vento.
Do sol
Sol que abrasados dias agiganta
no metal-ouro opaco dos ocasos
prendendo a voz na cela da garganta
calando o rio nos terrenos rasos.
Sol que desesconde nos atrasos
da safra pouca que não se adianta
nos forçando a colher, pelos acasos
um fruto amargo que nos desencanta.
Sol que incendeia os tetos dos atalhos
e não encurta a fome dos caminhos
repisados das solas dos bandalhos.
Sol que demove o vôo dos passarinhos
de esquálidos arbustos, já sem galhos
voando em vão na busca de outros ninhos.
Do vento
Vento que vem às cegas (olhos baços)
andrajoso e curvado de segredos
suportar o sol nos longos braços
portadores de fugas e de medos.
Vento, perfil do ar (sineiro alado)
que tange as brisas cinzas dos degredos
porto-horizonte dos enganos ledos.
Vento do exílio da água, vento torto
no vazio caminho em que não vi
chegar o rio no deserto porto.
Vento geral da voz Aracati
marinheiro fantasma de um mar morto
náufrago azul que quer morrer aqui.
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Das vazias vazantes
Caminho de curvas
de curvas e pedras.
De pedras e croas
de croas e areias.
De areias e poços,
de poços vazados.
Vazados de sóis,
de sóis abrasados
Nas brasas dos dias
dos dias secados
secados das brisas
das brisas dos prados.
Vazias vazantes
areias movidas.
O sol veio antes
das ramas crescidas.
Do tempo-rio no temp(estivo)
O rio segue no tempo
subterrâneo e sozinho
sob a saudade chorada
que não molhou o caminho.
O rio não segue mais
na areia da aguespuma.
Só segue no tempo (seco)
sem mais ir a parte alguma.
O rio se vai com o tempo
(água desaparecida).
Segue no tempo sua morte
á espera de outra vida.
Porque do rio a nascente
que é seu motivo de vida
num tempo estanca a corrente
noutro tempo renascida.
Por isso, o rio não é rio
sob a areia caminhada
debaixo do tempo estio.
Noutro — água ressuscitada.
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Da contextura intemporal
E na metamorfose da crisálida
e na lenta efeméride dos anos
e na passagem azul da nuvem pálida
no fluir de um projeto (inútil plano)
e no emigrar da nômade e esquálida
sombra veloz, da alma retirante
intemporal e rio permanece
e do sem-termo a contextura tece.
A voz da pedra e a cor da ventania
são pupilas do rio, no momento
em que aderem à sua teimosia
na luta contra a convenção do tempo.
E na noite entrançada à luz do dia
sussurra a pedra o azul do sempre-vento.
E intemporal o rio permanece
e do sem-termo a contextura tece.
Nos olhos de descanso e movimento
dos gafanhotos e dos passarinhos
na sem-luz das formigas, no lamento
dos sapos e das jias e nos ninhos
da cascavel (sineiro tão atento)
o desprezo das horas (adivinhos
do rio intemporal que permanece
e do sem-termo a contextura tece).
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Poemas extraídos da 7ª. Edição de JAGUARIBE – MEMÓRIAS DAS ÁGUAS. Ilustrações de Audifax Rios. São Paulo: Escrituras, 2005.
DEPRECAÇÃO PÚBLICA
Ó memória do meu país!
Recompensa-nos com o clarão
dos pretéritos anos de luta
redescobre os caminhos
alumiados de coragem
percorridos de esperança.
E
doa-nos uma canção
numa praça suburbana
com rabecas e realejos
em idioma avoengo.
E
mais: opera um milagre:
faz das gerações futuras
as inventoras de um tempo
novo aguardando a certeza
dos dons das vozes do povo.
A VOCAÇÃO DA INDIFERENÇA
A desmemória a que te abandonaste
vai esgarçando o véu tecido a custo
por mãos amigas para te abrigar.
O abraço esquecido
o riso negado
o gesto abolido.
Quem se fia em tanta precariedade?
LABOR COM CIÊNCIA
Para José Alves Femandes
O sábio semeador
conhece a gleba mais rara:
sabe de longe e de cor
o solo afeito à seara.
Une ciência e labor
às rotas do chão que ara.
S A T O R
A R E P O
T E N E T
O P E R A
R O T A S |
(Obs.: uma versão livre ou paráfrase do anônimo mas famoso palíndromo latino. A. M.)
Extraídos de VITRAL COM PÁSSAROS. Porto Alegre: Movimento, 2002. A obra mereceu o Prêmio Osmundo Pontes de Litearatura 2001.
vento
Em fins de julho, o vento mordeu
as janelas de casa. Voltou
por muitas vezes do incerto lugar
em que se exila dos mortais
reabastecido de velocidade e fúria
e golpeou os quadros na varanda.
O vento trouxe um gemido essencial
recordando as ditações originais
de vida e morte, na equilibrada
energia libertada entre as árvores
e os rios, as montanhas e as nuvens
eternas, sempre de passagem.
um maia distinguido
A Salomão Pinheiro Maia
Os mais insignes meus antepassados
vêm da nação romano-Ieonesa
e de godos ibero-arabizados
de uma ilustre família portuguesa.
Chegaram aos contornos aplainados
do Douro, deslembrados da nobreza
dos Ramírez, guerreiros destronados
por tramóias sequiosas de riqueza.
Já no Brasil, partiram pro Sertão
abandonando a lã pela cambraia
e o vinho verde pelo carrascão.
Mas ainda hoje, interior ou praia
é possível, em meio à multidão
por fala e gesto, distinguir-se um Maia.
Extraídos de AUTOBIOGRAFIA LÍRICA. São Paulo: Escrituras, 1005.
De
Luciano Maia
SEARA
Fortaleza: UFC/ Casa de José Alencar, 1994.
Portada
Ouves o denso galopar da noite?
Ouves seus passos lentos, sobraçando
as ruas da memória, em fundo açoite?
Se sentes que a lembrança vem chegando,
junto à indecisa e turva caminhada
da noite, que se vai distanciando,
momento em que se faz anunciada
a luz, só no teu peito guarnecida,
das sensações do tempo, é que é chegada
a hora fértil, hora consentida
da remissão de sons, cores, retratos
da pretérita idade acontecida.
Deixa, pois, que te diga destes fatos
que contemplam visões, gentes e andanças
resgatadas do instante de seus atos.
Descobrirás profundas semelhanças
entre a história da minha e de outras terras,
entre as minhas e as tuas esperanças.
Se encontrares, nas folhas que descerras,
algo pendente de dicção mais clara,
é que entre a pouca paz e muitas guerras,
nos falta ainda a luz com que se aclara
o caminho futuro, que conduz
à energia fecunda da Seara,
que o povo há de encontrar junto a essa luz.
Águas do Rio
Para Nilo Benevides
Querida, perdi três ganhos
no sertão do Jaguaribe.
Possuí outros rebanhos
que o tempo agora proíbe.
Mas os teus olhos castanhos
são meus, porque sempre os tive.
Querida, terás em mim
teu companheiro que sou.
Pois um bem-querer assim
só para nós dois ficou.
Quem quer ver o nosso fim
há muito já se finou.
Querida, quando eu chorar,
não é medo, não é frio.
São enxurradas do olhar
de outro tempo de extravio
que teima em rememorar
as águas grandes do rio.
Querida, quando eu morrer,
não sofras dores nem mágoas.
Deixa-me as cinzas correr
este rio e suas vagas
outras canções vão trazer
no longo pranto das águas.
De
Luciano Maia
NAU CAPITÂNEA 2 ed.
São Paulo: Escrituras, 2000
Jaguaribe, o Rio Poeta
Este rio inventou muitas palavras
recortadas nos remansos intumescidos de enxurrada,
metáforas sonoras do tempo das lavras.
escritas na vastidão de pautas imemoriais.
guardadas na lembrança antiga dos meninos de várzea.
O Jaguaribe me ditou poemas
chegados da infância de suas águas,
enlaçados aos sonhos camponeses
e aos retiros misteriosos
dos córregos sonâmbulos
que lhe entregam a dádiva
da tímida invernada sertaneja.
Este rio, poeta matuto do meu vale,
me ensinou uma canção interminável,
vinda dos primordiais sinais da fonte pequena
até as enluaradas vigílias da sua mansa barra.
Para não me esquecer dos seus poemas,
releio os passos lentos de suas águas,
revisitando os areais tão vastos
de sua ilha fecunda.
Ó Parapuã, pátria dos cataventos!
Versos do rio! Cânticos fluviais,
rapsódias das luas campesina,
ó terra interior.
promessas nas ramagens,
silêncio visitado de suspiros,
versos de amor, distância e inquietude!
Rio Jaguaribe, poeta matuto do meu vale.
Segundo Soneto da Nau Capitânia
Barco-brinquedo pervagando o vau
do córrego da infância, longe e tardo.
Fez-se um mar entre mim e aquela nau
que no cais da memória velo e guardo.
Não conheceu Cipango nem Macau.
Ancorou na água-ausente, junto a um cardo,
margem do tempo de um momento mau
que me fez nauta errante, insano bardo.
Os visitados cantos mais remotos
são mornas latitudes que me dão
ganas de desvendar mares ignotos.
Sou dessa nau o incauto capitão.
Em meio a gigantescos maremotos,
Sonho os mansos regatos do Sertão.
De
Luciano Maia
JAGUARIBE MEMÓRIA DAS ÁGUAS
2 ed.
Fortaleza: Fundação Cearense de Artecultura, 1988
As cidades deitadas, como que
espia o tempo na janela aberta,
vendo embaixo (aos meus pés) a se mexer
em remansosos passos liquefeito,
passar o Jaguaribe distraído,
sem se dar conta de que deve, ao certo,
deter-se em demorado cumprimento
à paisagem de roças tão efêmeras.
É que ignora o rio a precisão
de água que há além de suas margens,
em terrenos propícios à fartura.
É que ignora o Jaguaribe o não
que se tem dito ao sim dessas barragens
que o rio a cada inverno reinaugura.
MAIA, Luciano. Um canto tempestado. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1982. 134 p. 14x21 cm. Apresentação de Francisco Carvalho. Capa: Zenon Barreto. Ilustração: Alano Freitas. Col. Salomão Sousa. (EA)
XVII
Fiquei sabendo que pensar distante
buscando as mais grotescas soluções
fazia parte da mentira de antes
passiva de outros erros de depois
roendo as folhas de papel cercadas
pelos limites das prisões mais rudes
atravessada a boca pelas facas
inconsequentes laminosas duras
e frias como o zelo dos hipócritas
dos medrosos marchantes dos retalhos
desfeitos nos varais por sobre os postes
perseguindo a saída nos atalhos
preguiçosos e nédios tais filósofos
que a palavra escondida em si não vale
fiquei sabendo disso tudo agora
XXIV
Onde encontrar as horas combinadas
à sombra das noitadas luminosas
as horas rubras de horizonte perto
e de rubros sinais das alvoradas?
onde pousar as inquietações
aladas esperanças neste espaço
que mitifica a dor e os ideais
mas não abre o caminho aos nossos passos?
onde enfim empregar nossos anseios
tão cheios sempre de somente sê-los
sem como respondê-los descobrir?
na inconformidade repetida
e na busca do novo refletida
adiante nas horas que hão de vir
MAIA, Luciano. Autobiografia lírica. 2ª ed. revisada. São Paulo: Escrituras, 2000. 120 p. 14x21 cm. . “ Luciano Maia “ Ex. bibl. Antonio Miranda
querem roubar-me a pátria
Uma pátria sonhei. E aprendi
a querê-la primeiro que às demais.
As lições inspiravam-me esmeraldas
de um garimpo de sonhos e de estrelas.
Uma pátria aprendi com seus brinquedos
e seus sons soletrados desde a infância.
Percorri-lhe com o dedo pequenino
os seus nomes adentro, com perfume
de rios e florestas e jaguares
e de areias abrindo-se à salsugem
do Atlântico, dos sonhos da República
e de ébrios barcos de paixão morena.
Depois barraram todos os caminhos
que a ela conduziam-me as ardências
da juventude franca e corajosa.
Querem roubar-me a pátria, Castro Alves!
O poetas de génio, ó demiurgos!
Sublevai nosso povo, dai-nos cantos
de amor à estrela grande do Brasil!
MAIA, Luciano. As tetas da loba. Fortaleza, CE: Fundação Cearense de Arte-Cultura- CARTE, 1985. 99 p. 13x19 cm. Apoio SECULT “ Luciano Maia “ Ex. bibl. Antonio Miranda
SONETO DA ÁGUA DE AINADAMAR
(FONTE DE LÁGRIMAS)
Mi corazón desangra
como una fuente!
Federico Garcia Lorca
Momo goteja, em tarde madrugada,
por Federico o pranto Ainadamar.
Fonte que chora (água atribulada)
ai (nada amor), ai (dor) — Ainadamar!
Recordes do poeta de Granada,
agitan(do)a canção que desce ao mar.
Moç(a)árabe lamento em voz molhada,
se exaure em doce (en)canto (água a penar).
Refletindo na água da pupila
o sonho que não viu realizar
a retina da flor, morta na argila
ardente do andaluz peregrinar,
o coração revendo (água intranquila),
martirizada fonte a desangrar.
(1976)
MACTE NOVA V1RTUTE, PUER:
SIC ITUR AD ASTRA
.
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TEXTOS EM PORTUGUÊS Y EN ESPAÑOL
De
Luciano Maria
NERUDA
canto memorial
São Paulo: Editora Novos Rumos;
Fortaleza: Nação Cariri Editora, 1983
1
Teço este canto para celebrar-te
e exaltar teu perfil de demiurgo.
Para saudar o rio das palavras
que fluí da fonte límpida e primeira.
Teço este canto para cinzelar
em verbo e argila a estátua da memória.
Acima das palavras erigida,
no vão do tempo além perdurará.
Canto em voz solidária, porque tenho
um legado de luta como herança
e entre o que quero e faço a força nova
nascida da certeza mais remota
renovada no sempre da esperança
da certeza futura em que me empenho.
6
Me acerque de Federico,
de Thiago, de Vinícius
y de otros muchos amigos
idos y venidos.
Permanentes todos.
Me dijeron que sí.
Que hablas siempre de las amapolas
y de los ferrocarriles.
Que regalas ejemplares
de “El Isleño” a los amigos
que visitan Isla Negra.
Que escribes silencioso
las palabras de la aurora.
Me apuntaron el reloj de la Plaza
y he visto:
con los brazos de poetas
por entero,
me indicaron tiempo y camino.
13
He visto sobre rostros humillados
caer la nieve súcia del desprecio
de ojos orgullosos.
He visto tantas veces a los niños
arrastrando sus llantos por las calles
de un barrio polvoriento.
He visto risas y he oído lágrimas
recorriendo las plazas alejadas
de lúgubres mercados.
Brazos cruzando el aire sudoroso
bajo las parcas sombras del horario
de lentas alamedas.
Mucho más se me ha dado ver y ver
para creer que la infamia no es mentira
y ciega es la verdad.
18
Escuchando las voces sumergidas
en un mar de distancias y amenazas,
las borradas palabras esparcidas
por las cerradas bocas – las mordazas.
Oyendo el aire gris de manos frias
recogiendo las brumas arrastradas
por los brazos morados de los días
que callaron las rosas asombradas.
Y regresar tu Canto, verdadera
haste rebelde a sostener la palma
de la voz resgatada en la postrera
brisa del Tiempo Libre, voz en calma.
Y el silencio del mundo ya no era
más profundo que el Canto de tu alma.
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