Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada
GERARDO MELLO MOURÃO
(1917-2007)
Gerardo de Melo Mourão (Ipueiras, 8 de janeiro de 1917 — Rio de Janeiro, 9 de março de 2007) foi um jornalista, poeta e escritor brasileiro. Era membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Conselho Nacional de Política Cultural do Ministério da Cultura do Brasil. Era um dos mais respeitados escritores brasileiros no exterior.
Católico praticante, pertenceu ao movimento integralista, tendo estado preso dezoito vezes durante as ditaduras de Getúlio Vargas e de 1964-1985. Numa delas, ficou no cárcere cinco anos e dez meses (1942–1948).
Já na maturidade, foi candidato a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 1979. Em 1999 ganhou o Prêmio Jabuti pelo épico Invenção do Mar.
Fonte: Wikipédia
Bibliografia (incompleta): O Valete de Espadas e as dez elegias (1960), Cabo das Tormentas, A invenção do saber, O valete de espadas, Cânon & fuga, O país dos Mourões (1964), O sagrado e o profano, Invenção do Mar (Prêmio Jabuti de 1999), O Bêbado de Deus (2001).
Esta é a certidão de nascimento do que em vida
se chamou Gerardo
e ele mesmo a lavrou
em sua primeira e última pessoa — muitas
muitas outras pessoas houve entre a primeira e a última —
uma só verdadeira, pois,
nascido sou, poeta,
no mais cruel dos anos:
nasci em Tróia – e é falsa
a pública fé do registro civil no cartório
do coronel Né Guilhermino
pela qual o inocente seria nascido e datado
nas Ipueiras do Siarah Grande (...)
(fragmento de CERTIDÃO DE CARTÓRIO,
do livro CÂNON & FUGA, 1999)
O APRENDIZ
Não mais a Musa não mais
Teresa ou Isabel
e o príncipe devasso?
e o domador de fêmeas?
e o pretendente e o palácio
da mulher de Ulisses?
Galerias de cal
no hospital de Cleveland:
Enfermeiras e a neve e o ouro desses cabelos
e a bainha engomada dessa roupas de linho
por cama e câmara esvoaçam
aprendizes de anjo;
na boca morde termômetro de vidro
aprendiz de defunto.
Cleveland, 1994
TRAVESSA DAS ISABÉIS
Travessa das Isabéis
Entre pedras e azulejos
Modulam Lisboa à noite
Seus corpos de realejos
A luz desce a ladeira
E cobre as pedras de beijos
Ó lua de Portugal
De seus Tejos e Alentejos.
Vi todas as Isabéis
Sem ver Isabel alguma
Na ladeira fui contando
As pedras uma por uma
Tinha os olhos nas janelas
E pedra a pedra subia
Travessa das Isabéis
Quantas Isabéis havia?
De seu sobrado amarelo
O cônsul francês sorria:
A cada Isabel que olhava
Era outra que aparecia
De sua janela verde
Uma Isabel nos espia
Outra Isabel no balcão
Acenava e me dizia
Que tantas quantas quisesse
Eram Isabéis que havia:
Cada qual a mais bonita
Olhos negros olhos verdes
olhos de azul ou de mel
Cada qual mais portuguesa
Cada qual mais Isabel
Os olhos no doce rosto
Eram mais doces que o mel
Debaixo das sobrancelhas
Duas uvas moscatel
Na guitarra das cinturas
Quero ser vosso segrel
Sois balada e serenata
Nas cordas do menestrel.
Às oito horas da noite
Se abriram vinte janelas
Cem Isabéis me acenaram
Do alto de todas elas
Às oito horas da noite
São cinco em cada balcão
Tomam seu banho de lua
Cheirando a manjericão
Ou cheiro de flor de laranja
Ou de alfazemas dos campos,
Boa noite — me murmuram
Seus olhos de pirilampos
Não sei quantas eram ruivas
Quantas louras e morenas
Trigueiras, claras, castanhas,
Risonhas, sérias, serenas,
Pois eram cem raparigas
Do primeiro ao quarto andar,
E começaram a rir
E eu começava a chorar —
Tão longe de minhas mãos
Tão perto de meu olhar —
Uma viola perdida
Cantava as meninas belas
E devagar uma a uma
Se fechavam as janelas
Não sei se era mão da lua
Ou se seria a mão delas —
Na ladeira um anjo bêbado
Me perguntava por elas
E nas varandas, ausentes,
Apareciam mais belas
Lisboa, boca da noite
aloendros e água-mel:
Cada qual mais portuguesa
Cada qual mais Isabel.
Lisboa, botequim na esquina da
trvessa das Isabéis, 1994
EPIGRAMA 4
Ezequiel, o bêbado, era dependente de álcool
Gabriel era dependente de ópio
Rafael dependente de cocaína
Daniel dependente de dinheiro
Salatiel era dependente de roletas e baralhos
Zorobabel dependente de política e poder
Emanuel era dependente de mulher:
Ezequiel Gabriel Rafael Daniel Salatiel e Zorobatel
morreram um depois do outro:
não deixaram memória nem história
talvez um prontuário olvidado e uma repugnância neutra
na lembrança dos justos.
Emanuel também morreu:
deixou cinco engenhos de cana hipotecados
seis fazendas empenhadas
a fortuna paterna em ruínas
quinze viúvas trinta e oito filhos
uns cadernos de elegias e sonetos
e em sua caligrafia voluptuosa
umas estrofes da memória
uns decassílabos de sua memória:
era belo e macho e forte e bravo e bom e dependente
do heroísmo do amor.
E esse é seu testamento:
um coro de fêmeas na noite do velório
quarenta mulheres de coração partido
uma saudade em todas as alcovas
pungência lágrimas ternura
mais valiosas que os engenhos de cana e as fazendas de gado
— a história
da dependência de Emanuel
cobiçada herança dos rapazes do bairro.
Rio de Janeiro, 1998
fuga de Zeus com Leda
Para longe de mim embarco e parto
a bordo dum afago as mãos entristecidas
a boca a bordo
deste beijo uma noite no teu seio.
De minha ausência embarco
no lago onde flutuas e onde
minhas asas de há tempos
florescem sobre ti.
Lá onde eram de Zeus suspiros e saudades
na lonjura de mim eu caminhava
rumo ao cisne: agora sim, que à maciez
de tua orelha sopro
a pluma de teu nome
.....
alargam-se no lago
os círculos morrentes:
ai! para longe de mim embarco e parto.
um poeta
Hás de testemunhar ruínas
antes de existirem ruínas:
engenheiro de troços e destroços
empreitaras demolições —
desmoronaste muros.
Profeta — risca riscaste riscarás
roteiros de pássaros no ar — e riscas
calendários passados e futuros — riscas
a arquitetura dos escombros
antes durante e depois deles
os tempos ouvem ouviram e ouvirão
esses passos de pedra
que pisam pisaram pisarão
rosa, lírio, jasmim e às vezes
ovelhas imoladas.
Maios, janeiros, setembros e os outros meses
meses azuis e meses pluviais
te saúdam à beira das falésias à beira-mar à beira-rio
à beira-abismos à beira séculos:
piloto do naufrágio
governador dos tempos tetrarca dos milênios
arquivista — tabelião das eras
só os dias, poeta, e as noites, te conhecem
sabem teu nome
e nenhum outro nome.
Os dois últimos poemas foram extraídos de AZOUGUE 10 ANOS (Rio de Janeiro: Azougue, 2004), editora liderada pelo poeta Sergio Cohn.
Ulisses e as Sereias
Gerardo Mello Mourão habita o tormentoso cerne humano. É com beleza, que o poeta universal sopra o seu espanto, e canta aos que ouvem como deuses ou como simples seres mortais...Gerardo é meu poeta por excelência, é para ele, os bagos e os vinhos. É sorvo.
[ Texto enviado por DIEGO MENDES SOUSA ]
O QUE AS SEREIAS DIZEM A ORFEU NA NOITE DO MAR
.
(Sobre a frase musical de Ivar Frounberg
"Was sagen die Sirenen
als Odysseus vorbei segelte".)
Ninguém jamais ouviu um canto igual
ao canto que te canto
escuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar
só ouvem minha voz - a noite e o mar e tu
marinheiro do mar de rosas verdes:
virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim
mais o lençol de aromas de meu corpo
e dormirás comigo
e os que dormem com deusas
deuses serão - verás
cada arco de minhas curvas
à forma de teu corpo moldaremos - e a pele tua
aprenderá da minha
aroma e maciez e música
e entre garganta e nuca aprenderás
a noite dos que dormem a aurora dos que acordam
sobre os seios das deusas também deuses.
Vem dormir comigo
e comigo
e todas as sereias.
Todas as deusas se entregam
ao amante que um dia possuiu uma deusa
e então todas as fêmeas dos homens
Helenas, Briseidas e a Penélope tua
hão de implorar às Musas - e as Musas a Eros e Afrodite
a volúpia de uma noite contigo.
Não partas!
se partires
as velas de tua nau serão escassas
para enxugar-te as lágrimas - e nunca
nunca mais tocarás a pele das deusas
nunca mais a virilha das fêmeas dos homens
e nunca mais serás um deus
e nunca mais a melodia de uma canção de amor
dos hinos do himeneu
abelhas mortas para sempre irão morar
na pedra do jazigo de cera
de teus ouvidos cegos.
Mas vem
e vem dormir comigo
e comigo
e minhas irmãs e todas
as sereias do mar
as sereias da terra
e as sereias dos céus.
MOURÃO, Gerardo Mello. Susana – 3 Elegia e inventário. São Paulo, SP: Edições GRD, 1994. 49 p. ilus. 21x27,5 cm. Capas: “S” - figuração constelar medieval, expressando a visão de beleza celestial, do profeta Baruch ; contracapa: “Walkyria” de Paul Klee. Ilustrações de Rafael e J. J. Tissot. “ Gerardo Mello Mourão “ Ex. bibl. Antonio Miranda
(fragmentos)
Posso partir um dia —
partirei
com o rouxinol e o galo da madrugada
no peito estrangulados
Então já não lerei o fogo e as águas
mas
do coração das ondas e das labaredas ilisíveis
as pétalas irão formando
a rosa de água e fogo de teu rosto:
e sempre te verei
no silêncio das pedras
onde dançava essa cigana
nas arcadas de Rimini,
dpois,
ha dois mil anos eu te quero
e há dois mil anos estes olhos esta voz
trabalham o teu rosto e o nome teu
sôbolos rios de Babilônia
entre os bosques de Susa e os mármores de Rimini
entre as fontes de Susa
Susana
pois — vinhas de longe
às vezes
o cântaro na cabeça
caminhavas à beira do rio
e às vezes
as águas lambiam teu corpo nu
e entre o arvoredo
eras espreitada
e ias e voltavas
ao ritmo das águas e das margens
MOURÃO, Gerardo Mello. Poesia, Poeta, Poema.Florianópolis, SC: Museu/Arquivo da Poesia Manuscrita, 1999. Coleção Mapa. 32 p. 12 x 19 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
RONDÓ DA PRISÃO DE CAMÕES NO PÁTIO DO TRONCO
Pelas bandas do Rossío
numa taberna de vinhos
guitarras e violões
levaram um dia preso
Um Luís Vaz de Camões.
Foi preso por uma rixas
na Porta de Santo Antão
entre alguazis taberneiros
e fêmeas de ocasião.
Luís de Camões, Luís
fora à taberna da praça
tomar uns vinhos do Douro
dar ares de sua graça
... e quem sabe mais o quê...
Destino meu e do reino
é viver e morrer juntos.
Moro no mar e na terra
nem casado nem solteiro
sou servido em meus serviços
pelas sereias do mar.
De profissão fui soldado
e marinheiro do rei
e o reino sempre chegou
onde eu primeiro cheguei.
Hoje sou cantor das ondas
das velas em seus veleiros
das armas de Portugal
e seus barões cavaleiros”.
Perguntado por seus bens
disse que tinha uma espada
uma lira uma guitarra
e um copo para beber
e que estes bens — sua espada
o copo e a lira — sabia
manejar como ninguém,
nas Índias na Costa d´África
ou nas tascas de gaudérios
entre o Restelo e Belém.
De tudo isso vão dar conta
umas rumas de papel
que irá trazer de Macau
molhadas no sal das águas
em naufrágio no Mecongo;
com seus versos de dez sílabas
limados em boa lima
na língua melhor da terra
de estrofes de oitava rima.
Tinha também umas glosas
em sonetos escandidos
sóbolos rios e mares
na língua de Portugal
e nestes versos guardava
o seu melhor cabedal
e o nome de uma senhora
dona de seu coração
mas não diria este nome
diante duma ralé
no pátio de uma prisão.;
“Agora saiam da frente
que a espada que matou mouros
mata qualquer alguazil”
E pela porta de pedra
abriu caminho entre os biltres,
o fero ferro na mão;
saiu cantando, de volta
à Porta de Santo Antão,
onde esperavam jograis
e vinhos verdes do Dão
os marinheiros das Índias
e as fêmeas de ocasião.
Fortaleza, 10.12.98
Página ampliada e republicada em novembro de 2008; ampliada e republicada em setembro de 2014.
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