Nasceu em São Bernardo das Russas, interior do Ceará, em 1927. Poeta de obra vasta e contínua, vem merecendo o reconhecimento de seus pares e do público em geral. O poema foi extraído de seu livro Centauros Urbanos,de 2003.
O som de um realejo se dissolve na espuma da tarde
gatos famélicos passeiam nos muros dos quintais
um bêbado rodopia nas pernas bambas
automóveis de luxo semeiam estridências metálicas
e claridades surrealistas nas avenidas.
Crianças cor de ocre disputam migalhas de colostro
Perfuratrizes golpeiam as entranhas do asfalto
puérpuras de mamilos de loba vagueiam pelas ruas
de um paraíso sem anjos e mulheres.
Uma revoada de andorinhas destrói a Torre de Pisa
um navio apita solenemente pelos soldados
mortos na guerra do Peloponeso
peixes cor-de-rosa discutem eutanásia com facas amoladas
vendedores de anzol trapaceiam ampolas de morfina.
Gueixas fumam cigarros de ópio nas esquinas das catedrais
fantasmas barrocos despencam de torres góticas
computadores de última geração alardeiam
o suposto suicídio de Osama Bin Laden.
Cães treinados para castrar adolescentes investem
contra os mamilos de esfinges de pedra
que se entregam à volúpia dos faunos, num campo
onde outrora deceparam tulipas vermelhas.
De DIMENSÃO DAS COISAS
Fortaleza:Editora Instituto do Ceará, 1966.
A CIDADE ELEGÍACA
(fragmentos)
6
A cidade. A asfixia. Nos arranha-céus
as janelas emolduram suicídios banais.
Os públicos enternecimentos caninos
nos becos diuréticos. Meu coração
é o centro do mundo. Seu eixo submerso.
Não há solução para o absurdo da vida.
A alma é igual a uma teorema metafísico.
(O quadrado da hipotenusa é igual
à soma do quadrados dos catetos.)
Contudo o mistério permanece. E a ronda
vespertina das mulheres andróginas.
O complô. O medo. A volúpia da hora
expectante, o dealbar do insólito.
Deus é dinâmico até quando silencia.
Notes de abril para os esponsais de Andrõmeda!
Constelações do pecado, onde serei póstumo?
POEMA DA EMBRIAGUEZ
Bebem uns por desprazer,
astros, flor, vinho, absinto.
Bebem Deus para o esquecer.
Eu só bebo o que não sinto.
Outros bebem por desvelo,
solidões, o amor que dói.
Bebem Deus para esquecê-lo.
Eu só bebo o que não foi.
Outros bebem sal do mar,
azuis de ontem e de hoje.
Bebem Deus para o matar.
Eu só bebo o que me foge.
Alguns bebem céus e ventos,
som, memória, espera e gesso.
Bebem Deus e anjos imensos.
Eu só bebo o que me esqueço.
SONETO À RENDEIRA
O linho é uma oração remota, nesse
fluir fabril de fio para a flor.
Move-se o coração da moça, e esquece
o tempo prisioneiro, em derredor
da sombra esguia que à almofada tece.
Move-se, em seu afã modelador
de paz, o mito imemorial da prece
que do limbo da morte inventa o amor.
Movem-se dentro dela o sol e o vento.
Move-se o mar, e os pórticos se movem
das águas em perpétuo movimento...
Move-se a gênese em seu corpo jovem.
E, enquanto o olhar medita, os dedos tecem
gestos de amor que os lábios não conhecem.
DISCURSO PARA INICIADOS, poema do cearense FRANCISCO CARVALHO, na voz do poeta José Inácio Vieira de Melo, gravado para o PORTAL DE POESIA IBEROAMERICANA — www.antoniomiranda.com.br - em video realizado pelo webdesigner Juvenildo Barbosa Moreira, durante a Fliporto - Festival Literário, Olinda, Pernambuco, 2010. ´POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
CARVALHO, Francisco.Olhos de ressaca. 2ª. edição. Fortaleza, CE: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 2000. 30 folhas. Edição artesanal. 15x20,5 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
SONETO A CAPITU
Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura!
Desce do olimpo à terra prometida.
Quando eu remava a barca da loucura,
tu pisavas meu versos, distraída.
Tua nudez é o mito que se cala
para escutar os olhos de quem ama.
Falo à serpente, mas a minha fala
entre em teu corpo e nele se derrama.
Não dês ouvido às súplicas dos bardos,
ó pastora do vento e suas crias.
Podes mata-los com teus negros dardos.
Do amor se diz que é o fio da navalha.
Ao vendaval dos sonhos e dos dias,
perde-se a vida, ganha-se a batalha.
VÃ FILOSOFIA
Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura!
Dizem que o amor é pérola sem preço.
Sei que as ideias mudam de figura,
mas não sei se te odeio ou te mereço.
Se te mereço, ó noiva das campinas,
vem ter comigo a este solar dos ventos
onde me afogo em negros pensamentos
e me entrego a volúpias clandestinas.
Lamento que estejamos separados,
talvez por um capricho do destino
ou dos deuses gerados por cavalos.
Do amor resta a memória de uma palha
crestada por um fogo repentino.
Ganha-se a vida, perde-se a batalha.
REVISTA DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS. FORTRI NIHIL DIFFICILE Divisa de Beasconsfield. Ano CXVII – N. 73, 2012.Fortaleza, Ceará: edições Demócrito Rocha, 2012. 344 p.
Ex. bibl. de Antonio Miranda
Selecionamos 5 poemas:
Paisagem
a paisagem é o que resta da nuvem
dilacerada em pleno voo
a paisagem é o grito que incendeia
a metamorfose das cigarras
a paisagem é a cavalgada das éguas
para a volúpia dos centauros
a paisagem é um rebanho de cabritos
ruminando as tetas dos rios
a paisagem é o sangue derramado
das cicatrizes do dia
a paisagem é o vento perfumado
pelo hálito dos bois.
Ceticismo
a pátria é o lugar
de onde não veio
nem mel nem argila
para o molde do seio.
a pátria é o lugar
de onde não veio
a chama que acende
o odor do centeio.
a pátria é o lugar
de onde não veio
senão a morfina
do teu devaneio.
a pátria é o lugar
de onde me veio
este ceticismo
de metro e meio.
Sentimento da Tarde
A tarde escorrega
lentamente das copas
amortalhadas dos eucaliptos.
O crepúsculo é uma romaria de fanais
e andorinhas a caminho da noite
e das orgias do mar.
Poema de uma Nota Só
Comprei um galo para fritá-lo
em fogo ralo.
O mito a cavalo
a cada intervalo
do canto do galo.
Perdi, não vou acha-lo
nem pisar no calo
do rei Sardanapalo.
Não escutei estalo
apenas o badalo
do sino e seu embalo.
Meditem no que falo:
vou fritar um galo
Em fogo ralo.
Labaredas
O dia acende suas labaredas.
Matilha ruiva
que invade os campos
e vai aos rios
matar a sede.
O dia afugenta
os lobos que dormem
dentro das cavernas.
As nuvens de sépia
os sonhos de espuma
as sombras eternas.
*
Ampliada e republicada em janeiro de 2023.
Página ampliada e republicada em janeiro de 2009. Ampliada em março de 2107