DÉRCIO BRAÚNA
Nasceu em Limoeiro do Norte, Ceará, em 1979. É mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Publicou os livros de poesia O pensador do jardim dos ossos, A selvagem língua do coração das coisa, Metal sem húmus, além de livros de contos e teóricos abordando as relações entre história e literatura africana. Seu website é http://www.derciobrauna.com/ e seu perfil no Facebook é https://pt-br.facebook.com/kayarevistaliteraria.
BRAÚNA, Dércio. Aridez lavrada pela carne disto. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015. 112 p. 12X18 cm. ISBN 978-85-60676-99-6 “ Dércio Braúna “ Ex. bibl. Antonio Miranda
IDEIA, NOME E FORÇA:
A TÁBUA DA ORDEM DAS COISAS
É preciso haver uma força:
que não há de ser a que aí está,
sobre a curva do espinhaço
dos que a sustentam.
E preciso haver uma força
que atravesse o nome pacífico das coisas
que têm força sobre os homens.
E preciso haver uma força
que exponha os compósitos
(o sentido,
a mecânica)
com que se fabricam
as tábuas das verdades.
Um exemplo?:
a tábua da ideia
de que não há força
nos nomes que sustentam
a ordem das coisas.
O LINHO QUE AMARELECE O TEMPO
1.
Eu amava a casa de meu pai.
Não suas paredes cuidadas,
seu piso lavado, sua cor comum e limpa:
amava as coisas guardadas por seu nome.
Amava os retratos respeitados às paredes,
a mobília tranquila e sóbria,
o cheiro cada qual das horas.
Amava a poeira silente
sobre os livros,
o gesto pacífico de meu pai
ante eles.
Amava as vozes que perdi
e as palavras que não disse.
Amava no amor contido que devia.
Amava sem o nome para a coisa amada
(o amor não se diz quando há).
Amava os dias habitados
(os que habito na memória de que me visto).
2.
Mas não amava
(o amor não se diz quando há;
o amor é depois).
A casa que amo,
porque amo,
não pode ter havido
como amei.
O que amo é meu
(eu sou seu deus, seu pai e seu filho).
Não sabia
(quem o sabe ao tempo que devia?)
que
o amor aumenta
[talvez só exista]
com a amarelecimento do linho.*
*AL BERTO, O medo: trabalho poético1974-1997. 3ª ed. Lisboa: Assirio & Alvim, 2005; p. 43
FOME E VIDÊNCIA
[DIÁLOGO DÉCIMO]
INQUIRIDOR:
"Meus olhos não meu estômago são a parte de mim
que sente fome."*
INQUIRIDO:
É tua fome a fome verdadeira. É esse o alimento
que sacia.
Saber governar essa voragem é princípio de força.
Não há saciedade inteira dessa fome. É impossível
à curva de uma vida nutrir-se na mesma medida da
fome sentida. Há aí uma equação que não se dá.
Daí o princípio (ou mecânica de sobrevivência)
dos espíritos fortes (os que operam o nutrimento
bastante, conquanto insuficiente): "nenhum olhar
é estável"** ante a fome que o solicita.
MORAL SUMÁRIA:
Eis "a única resposta idónea para a fome"**.
*TONI MORRISON. Compaixão. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2009; p. 39.
** MICHEL FOUCAULT. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humana. 8 ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002; p. 5.
***A.M. PIRES CABRAL. Arado. Lisboa: Cotovia, 2009; p. 18.
Página publicada em agosto de 2015.
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