ABRAÃO BATISTA
ABRAÃO Bezerra BATISTA nasceu aos 4 de abril e 1935, em Juazeiro do Norte - Ceará. Perdeu o seu pai, Abdias Bezerra Baliste (de Natal-RN)
aos 7 anos de idade. A sua mãe, Maria José da Conceição, pernambucana da zona da mata (Barra do Chata- Agrestina) conseguiu proporcionar estudos para os seus seis filhos (quatro homens e duas mulheres). O primeiro grau cursou em Juazeiro do Norte e o segundo grau no Liceu do
Ceará, em Fortaleza (capital). Na Universidade Federal do Ceará concluiu o curso de Farmacêutico Bioquímico. Como farmacêutico exerceu o magistério público e particular - como professor de Física e desenho geométrico e projetivo. Posteriormente foi professor de Ecologia e Biofísica na
Universidade Regional do Cariri (URCA).
Foi na sua infância que as letras e artes apresentaram os seus primeiros brotos. Ora desenhando nas horas das aulas enfadonhas; oras fazendo
"negos" de barro para brincar com o seu grande amigo Jesu Sisnando. Com o tempo as suas tendências nas artes plásticas foram se acentuando. Hoje, Abraão Batista extravasa os seus pensamentos, ora no cordel, ora na xilogravura, ora na pintura e escultura. Um teclado que mostra muito bem,
o cosmo deste brasileiro nordestino.
BATISTA, Abraão. A anatomia do frevo. Xilogravuras de Abraão Batista. Juazeira do Norte, CE: Edição do Autor, 2006. 120 p. ilus. p&b 16x26 cm. Impresso na Gráfica Nobre. Col. A.M. Edição alternativa.
(uma seleção)
No frevo se manifesta
por completa, a expressão
da alma, a categoria
fazendo manifestação
da foto, frente e verso
corpo, cara e coração.
(...)
O frevo surgiu da tribo
da oca pernambucana
banhado nos raios de sol,
mamando caldo de cana
com berço na mata virgem
e no agreste bacana.
(...)
No frevo ferve a vida
como música ligeira
no reboliço, o corpo
dança com alma maneira
extravasando do peito
maluquice e canseira.
(...)
Daí, ouvindo os acordes
do trombone e trompete
do clarim e saxofone
do tarol e clarinete
o cabra se acelera
voando como confete.
(...)
Como o frevo do abafo
é alegre competição,
cada bloco querendo ter
a melhor representação...
Nesse caso os passistas
tiram fogo até do chão.
Temos o frevo coqueiro
com suas notas bem altas,
o trombone, nos agudos
marcando todas, sem faltas
além do frevo ventania
nas semicolcheias peraltas.
Firmo nestes meus versos
sobre a classificação;
repito: o frevo de rua,
bem como o frevo canção,
têm com o frevo de bloco
toda a representação.
Como já disse: o frevo
é criação de um povo
nasceu de grande alegria
isso eu digo de novo
o frevo pernambucano
tanto gosto que aprovo.
(...)
BATISTA, Abraão. Literatura de Cordel. Antologia. Vol. II. São Paulo: Global Editora, 1976. 191 p; 12,5x20 cm. Inclui 11 historietas; ilustrado com xilogravuras do autor. Col. Bibl. Antonio Miranda
LUTA DE UM HOMEM
COM UM LOBISOMEM
Agora que eu andei
pelas florestas do além
penetrei no inconsciente
íntimo que cada um tem,
sinto-me autorizado
para escrever o que vem.
Fui aos céus pra ver Jesus
e no inferno eu vi Caifaz;
nestes cantos eu tive a luz
que na terra ninguém faz,
meus pensamentos aqui pus
descrevendo uma luta assaz.
Presenciei por sete tempos
a luta de um certo homem
na mais cruenta das lutas
com o mais cruel lobisomem;
lá nesta peleja eu vi
miolo, coração, abdomem.
Numa encruzilhada que tem
cortando certa avenida
fazendo ponto estratégico
com o segredo da vida
bem na boca das cobras
para lá fui em seguida.
Não conduzia arma de fogo'
nem pau, peixeira ou foice
mas, tive coragem bastante
de olhar seja o que fosse
pois um barulho daquele
era pra guerra e danou-se.
Aproximei-me com cuidado
pra não entrar numa fria...
foi quando eu percebi
a vida e a agonia
a luta de um certo homem
com uma fera vã e baldia.
A sete metros fiquei
para melhor distinguir
os clarões das peixeiradas
os gemidos e o grunhir
as pancadas e os fungados
do homem e fera ao cair.
Não sei dos dois o valente
em cada um, mais ação
nunca vi tanta destreza
tanta ligeireza na mão
nunca vi dar tanto pulo
nem cair tanto no chão.
O homem tinha uma faca
a fera tinha os seus dentes
mãos cabeludas com garras
pelos horríveis, pendentes
e de cada gemido do bicho
saíam águas ardentes!
Era um bafo tão medonho
que da boca dele saía
muriçoca e qualquer inseto
depressinha morria
e se o cabra fosse fraco
ali mesmo caía.
O homem levantava a faca
o bicho se agachava
com um pulo de banda
de revestrez avançava
o homem como um felino
pulando de costa ele dava.
A faca trincava nos dentes
do lobisomem horrendo
os coices que o tipo dava
deixava o piso tremendo
mas o homem era ligeiro
com a peixeira ia tecendo.
O lobisomem tinha um aspecto
de um homem e dum guaxinim
era feio e fedorento
andava em pé e assim
como andava os outros bichos
que roem e comem capim.
O lobisomem falava
quando dava um golpe bom
com uma voz seca e fanhosa
com a boca cor de baton
os olhos verdes de fogo
como as águas lá do Leblom.
Era feio que a feiura
chamava a máxima atenção
para os detalhes que tinha
nas garras de gavião
as mãos como de homem
e os pés chatos no chão.
O que mais admirei
foi no poder que ele tinha
de mudar diversas cores
quando o homem mantinha
a superioridade
nesta luta sem linha.
O lobisomem também
dava tapa de lutador
dava golpes de caratê
querendo ser o senhor
mas o homem lhe respondia
como nenhum domador.
Era uma luta sem igual
nunca vi disposição
um homem, só, com uma faca
dar estouros como o trovão
nem ser humano aguentar
por tanto aquele rojão.
Nos ombros daquele bicho
tinham espinhos afiados
como os espinhos de jurema
maiores, verdes e dobrados
e brilhavam como relâmpagos
cortando os verdes dos prados.
Das orelhas de morcego
saía fumaça amarela
que gemia como prantos
de gentes em sentinela
as ventas, roxas e truncadas
como as abas duma gamela.
O homem dizia assim
destemido, sem arremedo:
bicho feio e ruim
a mim tu não metes medo
desapareces se não
amarro-te neste arvoredo!
Prendo-te aqui e amanhã
vou te mostrar na cidade
que lobisomem pra mim
não passa de veleidade
e sentou a faca no bicho
que quase arranca a metade.
Eu quero hoje descobrir
se é verdade ou boato
arranco tua língua, maldito
e com ela tiro o retraio
vou mostrar para a gente
toda a história de fato.
Neste momento eu notei
um sangue grosso correndo
já molhava os meus sapatos
que o barro ia embebendo;
e em qualquer folga que tinha
a terá o sangue bebendo.
Quando o sangue ele bebia
recobrava todo o vigor
e o homem que aquilo via
ficava pálido de horror
mas a peleja travava
com ânimo brusco e calor.
E da fumaça que surgia
rasteira, leve, dos dois
uma voz me descrevia
aquela cena pois, pois
do homem com o lobisomem
é o que acontece com nós...
O lobisomem é uma face
que se desconhece no homem
são os frutos da maldade
que os povos todos consomem
cada homem tem em si
de homem e de lobisomem.
Um lobisomem oculto
todo homem tem guardado
quem não vencer a maldade
está com o espírito mofado
esta luta é muito antiga
não fique decepcionado.
O lobisomem é o orgulho
é a gula, é a injustiça
é a felicidade oculta
que o vizinho cobiça;
é a falta de caridade
dos que vão e rezam a missa.
Todo ser humano tem
um limite no pecar
pode ser uma falta grande
que Jesus vem perdoar
mas quando foge da linha
por si mesmo vai pagar.
Existe um dito antigo
que ficou nesta cachola
o medo é de quem o faz
aprendi bem; rapazola
quem planta o mal meu rapaz
paga o mesmo na bitola.
Quem não respeita os outros
e despreza uma criancinha
quem não dá aos necessitados
e vive fora da linha
é lobisomem em folha
só falta a viradinha.
Ninguém se engane portanto
com a verdade da fé
de homem que é lobisomem
o mundo está cheio, pois é
a injustiça sem caridade
é seu diploma de pé.
Enquanto a fumaça falava
eu atento a ouvia
mas a contenda travava
com a maior rebeldia
o rasgo da faca do homem
nos dentes do bicho rangia.
Os pés do bicho, achatados
davam patadas de foice;
ó que se pegasse no homem
tinham o impacto dum coice
eu nunca vi ligeireza
que não livrasse o que fosse.
Às vezes saía fogo
das pedras da rodovia
quando a garra afiada
do lobisomem zunia
e o homem mais espritado
gritava: Virgem Maria!
A cor do couro do bicho
tinha um vermelho de prata
na altura das canelas
um amarelo de afavaca
das costas resplandecia
um arco-íris de naca.
O lobisomem, a certa altura
disse assim enraivecido:
com esta faca tu não me vences
tu pra mim és o vencido
já noto o teu braço esquerdo
de cansaço amortecido.
Entregues logo teus pontos
que te quero, ó meu irmão
o meu prato predileto
é o fígado e o coração
o resto deixo na estrada
prós urubus do sertão.
— Eu sou quem vou te pegar
e amarrar, não tenho medo
meto-te a faca na nuca
e deixo-te comendo bredo
pois daqui pró sol nascer
amarro-te naquele arvoredo.
Agora vais me dizer
disse o homem destemido
porque viras lobisomem
isto é máscara ou é vestido
tu pareces um palhaço
de mulher sem ter marido.
Se quiseres meter medo
arranje outra cara agora
pra que esta fumaceira
antes de se ver a aurora
lobisomem para mim
é boa noite e vá embora.
O lobisomem quis chorar
porque viu que não vencia
aquele homem tão valente
que há tempo ele não via
e da briga se lastimou
que de longe se ouvia.
Não vou ser mais lobisomem
encontrei um homem assim
eu pensei que este era
ladrão, infame e ruim
mas a bondade no mundo
põe a maldade no fim.
E falando desse jeito
quis pegá-lo pelo meio:
mas dum pulo foi desfeito
a malícia e o arrodeio
com uma facada no toitiçõ
fez o monstro fazer feio.
O homem deu uma risada
e disse: toma seu peste
lobisomem assim chorando
está perdido no agreste
cabra feio e duvidoso
por ele não há quem ateste.
O lobisomem já em prantos
foi dizendo: valha-me Deus
este homem é valente
não quero castigos seus
como escapulir daqui
são os problemas meus.
Tu não vais escapulir
porque vou te amarrar
amanhã toda a cidade
vai todinha admirar
este feio aspecto teu
muito tempo vai guardar.
O povo guardando imagem
dessa tua estatura
talvez se arrependa
e não caia na desventura
de ser também lobisomem
com esta horrenda figura.
Lobisomem é uma lenda
mas que se torna verdade
quem não sabe, aprenda
criança, velho e abade
lobisomem é o conflito
do amor e da maldade!
Lobisomem tem cada um
guardado no coração
as vezes muito escondido
que não enxerga a visão
para nas noites de lua
sair virado no cão.
Quando o homem é bondoso
e traz no peito a justiça
o amor vence o maldoso
vence o mal e a cobiça
e lobisomem, num desses
não vinga nem com malícia.
Cada um faça por si
pra não virar lobisomem
pois quem virar neste bicho
nunca mais é o mesmo homem
inda mais fica com um cheiro
que os urubus não consomem.
Eu já ia esquecendo
da contenda sem rival
do homem com o lobisomem
majestoso e teatral
nunca vi coisa mais feia
nem ardor descomunal.
Do chão saíam faíscas
subindo fumaça e pó
de cada rasgo da faca
rangia como uma mó
de cada baque que dava
enterrava o mocotó.
O lobisomem pulava
o homem pulava também
o chão estremecia
como se passasse um trem
e a faca dele corria
e eu dizia: amém.
Era noite, mas eu via
porque havia um clarão
a lua brilhava muito
que se via no chão
uma agulha ou alfinete
ou um caroço de algodão.
O lobisomem se enraivecia
porque não podia acertar
naquele homem valente
difícil de entregar...
e com golpes desconhecidos
para ele foi atacar.
Eu notei que o lobisomem
lançava vômitos de fogo
o homem se defendia
depressa, sem fazer rogo
e a estória dessa luta
em versos, quis fazer logo.
A força que o homem tinha
não vencia o lobisomem
e a destreza do monstro
não desbancava o homem
e sendo da bondade dele
minhas palavras se tomem.
Finalmente o bicho quis
num esforço descomunal
pegar o homem de jeito
e para ele foi o fatal
o homem acertou-lhe bem
no peito com o seu punhal.
A faca entrou de cheio
do lado do coração
o lobisomem gritou:
acode, meu guardião!
e sete raposas chocas
saíram dum furacão.
Quando o homem viu aquilo
lembrou-se do seu rosário
que estava dentro do bolso
e mostrou ao perdulário
o rosário de Maria
e a Santa Cruz do Calvário.
Nisso deu-se um estrondo
abalando légua e meia
o lobisomem e os felinos
desapareceram na peia
fazendo ponto final
daquela briga tão feia.
Se quiser não acredite
nesta estória aqui contada
mas são coisas que acontecem
na psicologia da estrada
no caminho do saber
onde o burro não ver nada.
Página publicada em novembro de 2013. Ampliada e republicada em maio de 2014.
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