SILVA DULTRA
“Tipos e costumes que não voltam mais, emergindo da bruma do passado, condensados nas 14 estrofes onde cintila a visão de uma Bahia tão distante no tempo e tão presente,
crônica em versos que revive momentos únicos de uma cidade que renasce, como numa coleção de gravuras, com sua paisagem desenhada com o pincel da emoção: os tamarindeiros, os becos, a mulher do mingau, os bondes, e sempre e sempre em tudo um delicado doce amargo da saudade. Silva Dultra escreve como quem pinta uma aquarela;
a mesma sutileza, os mesmos tons singelos, a mesma tinta diluída e o mesmo traço disfarçando as suturas, desenhados os contornos, limitando os espaços.
A saudade e a emoção nos apertam a garganta, da balaustrada do Porto debruçamos na infância e sem querer, de mansinho, lá estamos chrando com o poeta da inocência perdida.”
MYRIAM FRAGA - Coluna Linha D’água, A TARDE – Domingo, 21 de junho de 1987
De
Silva Dultra
SONETOS PITORESCOS DA
BAHIA NUM QUADRO
DE ANTIGAMENTE
Ilus. Calasans Neto
Salvador: Edições Macunaíma, 1990.
14 p.
SONETO DE UMA CENA DOMÉSTICA
NUM ANTIGO FUNDO DE QUINTAL
À Vera Seabra Ramos
No Bairro dos Barris, a rua antiga.
A casa com quintal. O Galinheiro.
O galo acorda o quarteirão inteiro
e a lavadeira engrola uma cantiga.
Um gato e um cão, metidos numa briga,
tentam deter o tempo passageiro
nas roupas do varal, no cajueiro,
na cisterna que, ao fundo, uma horta irriga.
A lembrança da chuva no telhado,
Chuva outonal caindo na cidade,
deixando o chão desse quintal molhado.
O pé de fruta-pão o oitão invade
e o jasmineiro em flor, de um outro lado,
devolve o tempo longe na saudade.
SONETO DA RUA &
DO LARGO DO CARMO
A Alfredo Lauria
O Convento do Carmo. A rua torta
na manhã de domingo se espreguiça.
O repique do sino os ares corta
e passa Dona Dulce para a missa.
Andam na procissão da tarde morta
os passos vivos da ladeira omissa.
A saudade que bate em cada porta,
bate, também, num coração que viça.
Os telhados narrando o casario.
Os moleques do largo. E o sorveteiro
que traz o tempo moderado frio.
A serenata em plena noite nua.
E a memória do Carmo de primeiro,
Olhando das janelas para a rua.
SONETO DE UM SANTO ANTONIO
DE POBRE DE ANTIGAMENTE
A Antonio Marcelino
Era no mês de junho. E na trezena,
o Santo Antonio era rezado em casa.
O dia treze, que eu não sei se atrasa,
numa sombria loja contracena.
O Santo Antonio, em sala tão pequena,
onde o calor de tanta gente abrasa,
deve atender à moça que não casa
e a todos os fiéis que estão em cena.
Aquela gente humilde da quitanda,
rezando com a fé que a crença manda,
deixava a se queimar a vela inteira.
Tendo o Santo louvado e agradecido,
num responsório a que lhe dão sentido,
a imagem volta ao nicho de madeira.
Página publicada em junho de 2010 |