RAYMUNDO DE SOUZA BRITO
Advogado, professor, jornalista e político. Nascimento: 10 de julho de 1900, Salvador-BA. Cursou o Secundário no Colégio Carneiro Ribeiro, Salvador. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Bahia, 1921. Falecimento: 17 de junho de 1982
De
Raymundo de Souza Brito
CAMINHOS PERDIDOS. POEMAS
Rio de Janeiro: Pongetti, 1946
CAMINHOS PERDIDOS
A minha infância foi embalada
péla toada
cadenciada,
dos atabaques e dos batuques
de negros fiéis.
Menino ainda, sabia os nomes
de deuses broncos,
de oguns estranhos
de candomblés.
Conheci a dolência
lânguida e terna
de velhas cantigas
sentimentais...
Modinhas que vibravam dentro da noite.
Noites luminosas,
cheirosas,
noites antigas,
noites baianas,
que eu não vejo mais.
Noites de ingênuas emoções,
sem rumores de bonde,
sem apitos de guardas,
cheias de lua e de violões.
Sobre a cidade adormecida,
o manto meigo de um luar de prata,
alma emocional
e dolorida
da serenata,
se derramava iluminando
velhos sobrados
de sacadas de ferro,
cheios de história,
cobertos de glória.
Minhas modinhas de Eduardo das Neves,
minhas modinhas de Catulo,
e, sobretudo» onde andam agora
minhas modinhas de Roberto Correia,
que eu perdi ?!
No mês de Junho, ia às trezenas
de Santo António, que minha tia
mandava rezar. .
(Uma promessa que ela fizera
de há muitos anos, para o meu tio
do Paraguai com vida voltar).
Depois da reza a gente dançava
até o dia amanhecer.
E eu namorava
as meninas do coro,
que o latinório da ladainha
cantavam convictas, sem compreender.
Conhecia e amava, uma a uma,
as pedras da velha Sé.
Aqueles muros vetustos,
aquelas portas veneráveis,
aqueles becos atormentados
não tinham segredos para mim.
Sabia a história dos homens rudes
que um dia vieram,
em caravelas,
fundar um reino
deste outro lado
do imenso mar.
Homens ferozes,
que, entre os combates,
paravam um instante
para rezar.
Atirava pedras
nas mulheres de capa,
virgens fanadas,
tristes "caponas"
obcecadas,
que de terço em punho
subiam ladeiras
pedindo esmolas
para São Cosme e Damião.
Mas, gostava de ir, contritamente,
marchando, lento,
na cauda imensa da procissão,
à voz dos sinos dobrando tristes,
delen-den-bão... delen-den-bão...
Aquelas voltas impossíveis
da velha Sé
não tinham segredos para mim.
E eu era feliz em plena mocidade,
na minha ingenuidade
de tupiniquim.
Mas, um dia, ruíram as pedras
da velha Sé.
E com aquelas paredes veneráveis
ruíram os meus sonhos.
Calaram os sinos
que me acordavam
nas manhãs domingueiras,
ensolaradas,
para ir rezar.
A cidade deu para sair à noite
para ver as luzes elétricas das ruas.
A cidade, vestida de novo,
tinha outra gente,
tinha outro povo.
Rolaram ao fragor iconoclasta
minhas ruas queridas
e meus sonhos ingênuos,
a minha mocidade-sentimento,
livre... livre... feliz...
sem a cultura,
sem a tortura
do pensamento
que faz o homem tão infeliz.
Abriram o meu cérebro
em nome de um princípio venerável
cujo nome esqueci,
e meteram dentro dele
cinco mil anos de literatura.
È eu que apenas sentira minha vida,
que sabia cantar,
fui me fazendo um rapazinho triste,
que aprendeu a pensar.
E hoje eu sou aquele que olha para a vida
intensíssima,
velocíssima,
com o olhar esgazeado,
cansado,
com que se olha um destino irremediável.
Pelo que se adivinhou
e sonhou
e não cumpriu.
Pelas flores que ficaram esquecidas
à beira dos caminhos
e murcharam
e penderam,
pelas flores que não foram colhidas.
Sinto que os sonhos da minha mocidade,
irrealizados,
sufocados,
gritam dentro de mim.
É um turbilhão irresistível,
clamando em altos brados,
desesperados,
ignorados,
por uma realidade que já lhes não posso dar,
Cândidas emoções... terna esperança...
dos meus tempos felizes de criança...
Caminhos perdidos,
que nunca mais hei de encontrar...
REZENDE, Edgar. O Brasil que os poetas cantam. 2ª ed. revista e comentada. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1958. 460 p.
15 x 23 cm. Capa dura. Ex. bibl. Antonio Miranda
BARRA A FORA
Um nordeste à feição a bujarrona enseia.
Driças de pique e boca enristadas ao vento,
Abojado o traquete, empina-se a "Sereia"
Sobre o dorso do mar, em jogo manso e lento.
Servindo à viração, que pouco a pouco alteia,
Orça mestre Miguel, à escota e ao leme atento.
Fremem, na disparada, a vela toda cheia
E a mezena apoupada e panda a sota-vento.
Agonizando, o sol mergulha, solitário,
No horizonte, a boreste. E a noite de verão
Desenrola no céu refulgido estretário.
O Morro de São Paulo entressurge, a brilhar,
Na luz do seu farol, que nos causa a impressão
De uma língua de fogo a lamber o alto-mar!
Página publicada em agosto de 2010; ampliada em dezembro de 2019
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