PEDRO KILKERRY
(1885-1917)
Nasceu em Santo Antonio de Jesus, Bahia. Não chegou a publicar livro em vida, sua obra foi disseminada em jornais e revistas, até ser recolhido na antologia Panorama do movimento simbolista brasileiro (1952), de Andrade Muricy. Considerado por Augusto de Campos como um dos precursores de nossa modernidade, é reconhecido na Re-visão de Kilkerry (1970).
“O metro é livre, vivamo-lo” KILKERRY
“Na verdade, mais do que o exotismo de uma personalidade invulgar, Kilkerry traz para o Simbolismo brasileiro um sentido de pesquisa que lhe era, até então, estranho, e uma concepção nova, moderníssima, da poesia como síntese, como condensação; poesia sem redundâncias, de audaciosas crispações metafóricas e, ao mesmo tempo, de uma extraordinária funcionalidade verbal, numa época em que o ornamental predominava e os adjetivos vinham de cambulhada, num borbotão sonoro-sentimental que ameaçava deteriorar os melhores poemas.” AUGUSTO DE CAMPOS [in Re-visão de Kilkerry. São Paulo: Fundo Estadual de Cultura, s.d., p. 11]
“Tem Kilkerry essa qualidade rara, na poesia brasileira, que é a invulnerabilidade ao pieguismo, ao sentimentalismo, frequentemente confundidos com a própria poesia pela crítica indígena. Tal virtude, aliás, parece ínsita à personalidade do poeta. Pelo menos esse é o testemunho de Jackson Figueiredo:” Pobre como talvez nenhum dos que compunham aquele grupo de boêmios sentimentais, era, em meio deles, o menos sentimental, mais esquivo a lamúrias e queixas.”” AUGUSTO DE CAMPOS (obra citada p. 27)
“o Gregório de Matos daquele período da vida baiana.” Jackson Figueiredo, citado por Augusto de Campos.
Veja também: >>>POÉTICAS DO DESVIO E DESVARIO: – OS TEMPOS FÁUSTICOS NA LÍRICA DO LUGAR, Ensaio de Dalila Machado sobre Junqueira Freire, Pedro Kilkerry e Alberto Luiz Baraúna, Resenha do livro, por ANTONIO MIRANDA
In ENGLISH / Em PORTUGUÊS
O MURO
Movendo os pés doirados, lentamente,
Horas brancas lá vão, de amor e rosas
As impalpáveis formas, no ar, cheirosas.. . .
Sombras, sombras que são da alma doente!
E eu, magro, espio... e um muro, magro, em frente
Abrindo á tarde as órbitas musgosas
— Vazias? Menos do que misteriosas —
Pestaneja, estremece. . . O muro sente!
E que cheiro que sai dos nervos dele,
Embora o caio roído, cor de brasa,
E lhe doa talvez aquela pele!
Mas um prazer ao sofrimento casa. . .
Pois o ramo em que o vento á dor lhe impele
É onde a volúpia está de urna asa e outra asa. . .
FLORESTA MORTA
Por que, á luz de um sol de primavera
Urna floresta morta? Um passarinho
Cruzou, fugindo-a, o seio que lhe dera
Abrigo e pouso e que lhe guarda o ninho.
Nem vale, agora, a mesma vida, que era
Como a doçura quente de um carinho,
E onde flores abriram, vai a fera
— Vidrado o olhar — lá vai pelo caminho.
Ah! quanto dói o vê-la, aqui, Setembro,
Inda banhada pela mesma vida!
Floresta morta a mesma cousa lembro;
Sob outro céu assim, que pouco importa,
Abrigo á fera, mas, da ave fugida,
Há no meu peito urna floresta morta.
Sobre um mar de rosas que arde
Sobre um mar de rosas que arde
Em ondas fulvas, distante,
Erram meus olhos, diamante,
Como as naus dentro da tarde.
Asas no azul, melodias,
E as horas são velas fluidas
Da nau em que, oh! alma, descuidas
Das esperanças tardias.
Cetáceo*
Fuma. É cobre o zênite. E, chagosos no flanco,
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um largo vôo branco.
Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunida a pele atijolada.
Tine em cobre o zênite e o vento arqueja e o oceano
Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.
E na verde ironia ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d’ água ou do sol vermelho.
“Aqui [no poema Cetáceo], na sintaxe condensada e trabalhada por esquisitas sonoridades, os planos imagéticos se aglutinam, se superpõem, provocando uma descontinuidade semântica que abstratiza a aquarela marinha, desparnasiando-a. (...) As imagens se aglomeram em contínuas elpses. Imagens, quase sempre, de movimento.” AUGUSTO DE CAMPOS (obra citada, p. 30)
“A análise estrutural desse soneto revela algumas das características fundamentais da estilística de Kilkerry. Sua técnica avançada de compressões imagéticas, à base de metonímias e metáforas, seu “atonalismo” sintático, sua musicalidade agressiva e dissonante. E acima de tudo o alto grau de consciencialização da linguagem, uma intuição notável daquilo a que Décio Pigntaria denominou de “isomorfismo” em poesia (“o conflito entre fundo e forma em busca da identificação”) e que outra coisa não é que a interação som-significado com que Jakobson caracteriza, essencialmente, a linguagem poética, identificando-a, por exemplo, em conjuntos fõncios como veni, vidi, vici, que nos fazer pensar nos dissílabos-chave de Kilkerry.”
AUGUSTO DE CAMPOS, p. 32
“Descontadas a simplificação cronológica e uma certa ingenuidade com que o problema é colocado por Chiacchio, não há dúvida que Kilkerry pode ser colocado entre aqueles simbolistas que anteciparam muitas das novas técnicas postas em prática pelos movimentos de vanguarda do início do século. Em particular, se se tem em vista o contexto brasileiro, em que, como se sabe, o surto renovador do Modernismo veio a eclodir, com algum retardo, já na década de 20.” AUGUSTO DE CAMPOS, p. 33
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
*De acordo com Augusto de Campos (1985), não apenas a dicção de Kilkerry, sua sintaxe prismática e o próprio tema o aproximam de Mallarmé mais do que de qualquer outro dos poetas malditos, mas o verso inicial do "L'azur" de Mallarmé, assim reproduzido: "De l'éter nel azur la sereine ironie", é, segundo ele, semelhante ao verso "E na verde ironia ondulosa de espelho", de "Cetáceo", como se pode verificar no soneto acima transcrito. Também o verso "Coalha bebendo o azul um largo vôo branco", de arrevezamento sintático que o assemelha a
Mallarmé, é citado como um dos mais belos versos da língua portuguesa, pela composição sofisticada e indireta de uma metonímia (voo no lugar de pássaros) articulada com duas metáforas, branco que coalha (coagula como leite) e bebe o azul (céu), para citar apenas dois exemplos da excelência deste soneto mencionado em ReVisão de Kilkerry. O poema traz a presença da imagem de um cetáceo, que se anima como por um sopro divino, na paisagem expressionista a qual se assemelha também ao poema "Salut", de Mallarmé, pela sugestão de uma marinha
extravagante, diferente, numa associação de metonímias e metáforas inesperadas e insuspeitadas.
Extraído de:
Dalila Machado
Os tempos fáusticos na lírica do lugar.
Salvador: EDUFBA, 2010.
267 p. ISBN 978-85-232-0704-5
In ENGLISH / Em PORTUGUÊS
PEDRO KILKERRY
(1885-1917, Brazil)
Born in Bahia, Kilkerry was first published in literary reviews such as Novo Cruzada and Os Anais. His symbolist aesthetic garnered him the attention of the literary critic Jackson de Figueiredo, who compiled his work. In the 1970s, he was again discov¬ered, this time by the Concrete Art movement and, in particular, Augusto de Cam¬pos, who compared Kilkerry to Mallarme and described him as one of the most innovative poets of his day.
It's the Silence
Mark A. Lokensgard, trans.
It's the silence, it's the cigarette and the lit candle.
The bookcase looks at me in every book that looks.
And the light on one of the volumes on the table ...
But it is the blood of the light on each page.
I do not know if it is really my hand that wets
The pen, or really instinct that grips it tightly.
I think of a present, of a past. And your nature
Covers Nature itself with leaves.
But it is a meddling with things. . . Agitated
I take up my pen, I dupe myself into thinking I describe
The illusion of one sense and another sense.
So distant it goes!
So distant your step becomes soft
A wing that the ear animates...
And the chamber mute. And the parlor mute, mute . . .
Voicelessly red. The wing of the rhyme
Holds me aloft. I remain there like a new
Buddha, a specter to the approaching sound,
The bookcase grows as if shaking off
A nightmare of papers piled on top ...
]
And I open the window. From the moon
Are wisping some last wavering notes.. . The day
Will bloom late through the mountain.
And oh! my beloved, feeling is blind ...
Do you see? To my longing contribute the spider,
A cat's paws and a bat's wings.
E o silêncio
E o silêncio, e o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz nalgum volume sobre a mesa . . .
Mas o sangue da luz em cada folha.
Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena,ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas . . . Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima . . .
E a câmara muda. E a sala muda, muda . . .
Afonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima . . .
E abro a janela. Ainda a lua esfia
Últimas notas trémulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha.
E oh! minha amada, o sentimento é cego ...
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.
Mare Vitae
Mark A. Lokensgard, trans.
"Row! row!" And the small boat
Went gliding, as though the water dreamed.
Standing in the bow was the ganfalonier—
"Row! row!"—my own Sorrow.
Fading in color, quickly, is an illusion. And I drown it
To the war song's sound of fire
Still gliding as though the water dreamed
"Row! row!"—the small boat.
But suddenly a voice. Moaning,
Under the concave silence of the stars
Who sings thus of love? I don't understand .. .
And oh! Death—I said—this song terrifies me:
Don't deny that the pulsating masts tremble
At the red sound of the war song.
Mare Vitae
—Remar! remar!—E a embarcação ligeira
Foi deslizando, como um sonho da água.
De pé, na proa, era a gonfaloneira
—Remar! remar! a minha própia Mágoa.
E esmaia, logo, uma ilusão. E afago-a
Ao som de fogo de canção guerreira,
Vai deslizando como um sonho da água
—Remar! remar! a embarcação ligeira.
Mas uma voz de súbito. Gemendo,
Sob o silêncio côncavo dos astros
Quem canta assim de amor? Eu não compreendo . . .
E oh! Morte—eu disse—esta canção me aterra:
Dá-me que tremam palpitando os mastros
Ao som vermelho da canção de guerra.
THE OXFORD BOOK OF LATIN AMERICAN POETRY: a bilingual anthology edited by
Cecilia Vicuña and Ernesto Livon-Grosman. Agawam. MA, USA: Oxford University
Press, 2009. 561 p. 16x24,5 cm. Contracapa, capa dura. ISBN 978-0-19-512454-5
Inclui os poetas brasileiros: Gregório de Matos, Antonio Gonçalves Dias, Manuel
Antonio Alvares de Azevedo, Sousândrade, Antonio de Castro Alves, João da Cruz e
Sousa, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Pedro Kilkerry, Manuel Bandeira, Oswald de
Andrade, Mário de Andrade, Raul Bopp, Cecilia Meireles, Carlos Drummond de
Andrade, Apolônio Alves dos Santos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Augusto
de Campos, Paulo Leminski. Ex. bibl Antonio Miranda
Página ampliada e republicada em julho de 2009. Página republicada em dezembro de 2017
|