PRÓTASE
Embora um vate canhoto
Dos loucos aumente a lista
Seja cisne ou gafanhoto
Não encontra quem resista
Dos seus versos à leitura,
Que diverte, Inda que é dura! .
(F. X. de Novais)
No meu cantinho,
Encolhidinho,
Mansinho e quedo,
Banindo o medo,
Do torpe mundo,
Tão furibundo,
Em fria prosa Fastidiosa —
O que estou vendo
Vou descrevendo.
Se de um quadrado
Fizer um ovo
Nisso dou provas
De escritor novo.
Sobre as abas sentado Parnaso,
Pois que subir não pude ao alto cume,
Qual pobre, de um Mosteiro à Portaria
De trovas fabriquei este volume.
Vazios de saber, e de prosápias
Não tratam de Ariosto ou Lamartine
Nem rescendem as doces ambrosias
De Lamires famoso ou Aretine
São ritmos de tarelo, atropelados,
Sem retro, sem cadência e sem bitola
Que formam no papel um ziguezague,
Como os passos de rengo manquitola.
Grosseiras produções d'inculta mente
Em horas de pachorra construídas;
Mas filhas de um bestunto que não rende
Torpe lisonja às almas fementidas.
São folhas de adurente cansanção
Remédio para os parvos d'excelência;
Que aos arroubos cedendo da loucura
Aspiram do poleiro alta eminência.
E podem colocar-se à retaguarda
Os veteranos sábios da influência
Que o trovista respeita submisso,
Honra, pátria, virtude, inteligência
Só corta com vontade nos malandros,
Que fazem da Nação seu Montepio;
No remisso empregado, sacripanta,
No lorpa, no peralta, no vadio.
A frente parvalhões, heróis Quixotes,
Borrachudos Barões da traficância;
Quero ao templo levar do Grão Sumário
Estas arcas pejadas de ignorância.
RETRATO
É renga, magricela e presumida,
Com pele de muxiba engrouvinhada;
O corpo de sumaca desarmada,
A cara de muafa mal cosida;
A perna de forquilha retorcida,
Os ombros de cangalha um tanto usada;
A boca, de ratões grata morada,
Maçante na conversa em mal sofrida;
Senhora de um leproso cão rafeiro,
Que, querendo passar por mocetona,
Se besunta com sebo de carneiro;
Vestida é saracura de japona,
De feia catadura, e de mau cheiro,
Eis a choca perua da Amazona.
SONETO
Sob a copa frondosa e recurvada
De enorme gameleira, secular,
Sentado numa ufa a se embalar,
Estava certa moça enamorada.
Eis que rola dos ramos inflamada
Tremenda jararaca a sibilar;
Fica a jovem na corda, sem parar,
Como a Ninfa de amor eletrizada!
Anjo Bento! exclamaram os circunstantes;
— Foge a cobra de horrenda catadura,
Os olhos revolvendo coruscantes.
Mas a bela moçoila com frescura
Num sorriso acrescenta — é das amantes
Nem das serpes temer a picadura.
[ GAMA, Luis ] SILVA, J. Romão da. Luis Gama e suas poesias satíricas. 3ª. edição, revista e aumentada. Rop de Janeiro: Livraria Editora Cátedra; Brasília: Instituto Nacional do Livro – INL, 1981. 218 p. 14x21 cm. Inclui bibliografia. Col. Bibl. Antonio Miranda
SORTIMENTO DE GORRAS
(Para gente de grande tom)
Seja um sábio o fabricante,
Seja a fábrica mui rica,
Quem carapuças fabrica
Sofre um dissabor constante;
Obra pronta, voa errante,
Feita avulso, e sem medida;
Mas no voo suspendida,
Por qualquer que lhe apareça,
Lá lhe fica na cabeça,
Té as orelhas metidas.
(F. X. de Novais)
Se grosseiro alveitar ou charlatão
Entre nós se proclama sabichão;
E, com cartas compradas na Alemanha,
Por anil nos impinge ipecacuanha;
Se mata, por honrar a Medicina,
Mais voraz do que uma ave de rapina;
E num dia, se errando na receita,
Pratica no mortal cura perfeita;
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois tudo no Brasil é raridade!
Se os nobres desta terra, empanturrados,
Em Guiné têm parentes enterrados;
E, cedendo à prosápia, ou duros vícios,
Esquecendo os negrinhos seus patrícios;
Se mulatos de cor esbranquiçada,
Já se julgam de origem refinada,
E curvos à mania que domina
Desprezam a vovó que é preta mina:
Não te espantes, ó Leitor, da novidade
Pois tudo no Brasil é raridade!
Se o Governo do Império Brasileiro,
Faz coisas de espantar o mundo inteiro,
Transcendendo o Autor da geração,
O jumento transforma em sor Barão;
Se o estúpido matuto, apatetado,
Idolara o papel de mascarado;
E fazendo-se o lorpa deputado,
N'Assembléia vai dar seu — apolhado!
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois tudo no Brasil é raridade!
Se impera no Brasil o patronato,
Fazendo que o camelo seja gato,
Levando o seu domínio a ponto tal,
Que torna em sapiente o animal;
Se deslustram honrosos pergaminhos
Patetas que nem servem p'ra meirinhos
E que sendo formados bacharéis,
Sabem menos do que pecos bedéis:
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!
Se temos Deputados, Senadores,
Bons Ministros, e outros chuchadores;
Que se aferram às tetas da Nação
Com mais sanha que o Tigre, ou que o Leão;
Se já temos calçados — mac-lama,
Novidade que esfalfa a voz da Fama,
Blasonando as gazetas — que há progresso,
Quando tudo caminho p'ro regresso:
Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!
Se cotamos vadios empregados,
Porque são de potência afilhados,
E sucumbe, à matroca, abandonado,
O homem de critério, que é honrado;
Se temos militares de trapaça,
Que da guerra jamais viram fumaça,
Mas que empolgam chistosos ordenados,
Que ao povo, sem sentir, são arrancados:
Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!
Se faz oposição o Deputado,
Com discurso medonho, enfarrusca
E pilhado a maminha da lambança,
Discrepa do papel, e faz fundança;
Se esperto capadócio ou maganão,
Alcança de um jornal a redação,
E com quanto não passe de um birbante
Vai fisgando o metal aurissonante,
Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!
Se a guarda que se diz — Nacional,
Também tem caixa-pia, ou musical,
E da qual dinheiro se evapora,
Como o — Mal — da boceta de Pandora;
Se depois se conserva a — Esperança;
E nisto resmungando o cidadão
Lá vai ter ao calvário da prisão;
Não te espantes, ó Leitor da pepineira ,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!
Se temos majestosas Faculdades,
Onde imperam egrégias potestades,
E, apesar das luzes dos mentores,
Os burregos também saem Doutores;
Se varões de preclara inteligência,
Animam a defender a decadência,
E a Pátria sepultando em vil desdouro,
Perjuram como Judas — só por ouro:
E que o sábio, no Brasil, só quer lambança,
Onde possa empantufar a larga pança! *
Se a Lei fundamental — Constipação,
Faz papel de falaz camaleão,
E surgindo no tempo de eleições,
Aos patetas ilude, aos toleirões;
Se luzidos Ministros, d'alta escolha,
Com jeito, também mascam grossa rolha;
E clamando que — são independentes —
Em segredo recebem bons presentes:
E que o sábio, no Brasil, só quer lambança, .
Onde possa empantufar a larga pança!
Se a Justiça, por ter olhos vendados,
É vendida, por certos magistrados,
Que o pudor aferrando na gaveta,
Sustentam — que o Direito é pura peta;
E se os altos poderes sociais,
Toleram estas cenas imorais;
Se não mente o rifão, já mui sabido:
Ladrão que muito furta é protegido —
É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,
Onde possa empantufar a larga pança!
Se ardente campeão da liberdade,
Apregoa dos povos a igualdade,
Libelos escrevendo formidáveis,
Com frases de peçonha impenetráveis;
Já do Céu perscrutando alta eminência
Abandona os troféus da inteligência;
Ao som d'aragem se curva, qual vilão,
O nome vende, a glória, a posição:
É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,
Onde possa empantufar a larga pança!
E se eu, que amigo sou da patuscada,
Pespego no Leitor esta maçada;
Que já sendo avezado ao sofrimento,
Bonachão se tem feito pachorrento;
Se por mais que me esforce contra o vício,
Desmontar não consigo o artifício;
E quebrando a cabeça do Leitor
De um tareio não passo, ou falador,
É que tudo que não cheira a pepineira
Logo tacham de maçante frioleira.
GAMA, Luis. Primeiras trovas burlescas de Getulino. Salvador, BA: P55 Edições, 2011. 164 p. (Coleção Biblioteca Básica de Literatura Baiana) ISBN 978-85-89655-63-7 “ Luis Gama “ Ex. bibl. Antonio Miranda
SONETO
MOTE
E não pode negar ser meu parente!
Sou nobre, e de linhagem sublimada,
Descendo, em linha reta, dos Pegados,
Cuja lança feroz desbaratados
Fez tremer os guerreiros da Cruzada!
Minha mãe, que é de proa alcantilada,
Vem da raça dos Reis mais afamados;
— Blasonava entre um bando de pasmados.
Certo povo de casta amorenada.
Eis que brada um peralta retumbante;
— "Teu avô, que de cor era latente,
"Teve um neto mulato e mui pedante!"
Irrita-se o fidalgo qual demente;
Trescala a vil catinga nauseante,
E não pode negar ser meu parente!,
COLEIRINHO
Assim o escravo agrilhoado canta.
Tibulo
Canta, canta Coleirinho,
Canta, canta, o mal quebranta;
Canta, afoga mágoa tanta
Nessa voz de dor partida;
Chora, escravo, na gaiola
Terna esposa, o teu filhinho,
Que, sem pai, no agreste ninho,
Lá ficou sem ti, sem vida.
Quando a roxa aurora vinha
Manso e manso, além dos montes,
De ouro orlando os horizontes,
Matizando as crespas vagas,
—Junto ao filho, à meiga esposa
Docemente descantavas,
E na luz do sol banhavas
Finas penas - noutras plagas.
Hoje triste já não trinas,
Como outr'ora nos palmares;
Hoje, escravo, nos solares
Não te embala a dúlia brisa;
Nem se casa aos teus gorjeios
O gemer das gotas alvas
— Pelas negras rochas calvas —
Da cascata que desliza.
Não te beija o filho tenro,
Não te inspira a fonte amena,
Nem da lua a luz serena
Vem teus ferros pratear.
Só de sombras carregado,
Da gaiola no poleiro
Vem o tredo cativeiro,
Mágoas e prantos acordar.
Canta, canta Coleirinho,
Canta, canta, o mal quebranta;
Canta, afoga mágoa tanta
Nessa voz de dor partida;
Chora, escravo, na gaiola
Terna esposa, o teu filhinho,
Que sem pai, no agreste ninho,
Lá ficou sem ti, sem vida.
GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas de Luiz Gama (Getulino). 3ª. edição correcta e augmentada. São Paulo: Typ. Bentley Junior & Comp., 1904. 234 p. 12x16,5 cm. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação de Aricy Curvello.
[conservando a ortografia original]
O GAMENHO*
Parece-me impossível que o gamenho
Que cuidoso só tracta do cabello,
Não tenha transformado em um novelo
O miolo que encobre tal desenho!
Lá ginga na praça
Gentil namorado;
Que as bellas mais dengues
Lhe rendem mendengues,
Passinhos de Nympha
Mimosa, engraçada;
Parece uma fada,
Nem Venus formosa
Como elleé garbosa!
Tregeitos femíneos,
Pisar delicado,
Andar compassado;
Oh céos, que luxuria,
Que terna meluria! —
Que ar seductor,
Que todo elegante,
Que lindo semblante,
Que pé delicado —
Parece moldado!
Mas se queres, Leitor, ver um contraste,
Adonis em Morcego transformado,
Ou Cupido em figura de Macaco —
Approxima-te ao nescio namorado.
É um velho farçola, desfructavel,
Com fumaças de joven, repimpado,
Que ao ridículo se presta, qual demente,
Figura de presepe ou mascarado.
*adj. e s.m. Casquilho, peralta, janota. Vadio.
[ GAMA, Luiz ] COM A PALAVRA LUIZ GAMA: poemas, artigos, cartas, máximas. Organização, apresentações, notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. 304 p. ilus. ISBN 978-85-7060-924-8 Ex. bibl. Antonio Miranda
“Poeta, jornalista e advogado, Luiz Gonzaga Pinto da Gama (Salvador, 1830 – São Paulo, 1882) é um dos raros intelectuais negros brasileiros do século XIX , o único autodidata e o único, também, a ter vivido a experiência da escravidão”. LÍGIA FONSECA FERREIRA
MINHA MÃE
Minha mãe era mui bela,
— Eu me lembro tanto d'ela,
De tudo quanto era seu!
Tenho em meu peito guardadas,
Suas palavras sagradas
C'os risos que ela me deu.
Junqueira Freire
1
Era mui bela e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha,
E no Brasil pobre escrava!
Oh, que saudades que eu tenho
Dos seus mimosos carinhos,
Quando c'os tenros filhinhos
Ela sorrindo brincava.
2
Éramos dois - seus cuidados,
Sonhos de sua alma bela;
Ela a palmeira singela,
Na fulva areia nascida.
Nos roliços bra.cos de ébano,
De amor o fruto apertava,
E à nossa boca juntava
Um beijo seu, que era vida[.]
3
Quando o prazer entreabría
Seus lábios de roixo lirio,
Ela fingia o martírio
Nas trevas da solidão.
Os alvos dentes nevados
Da liberdade eram mito,
No rosto a dor do aflito,
Negra a cor da escravidão.
4
Os olhos negros, altivos,
Dois astros eram luzentes;
Eram estrelas cadentes
Por corpo humano sustidas.
Foram espelhos brilhantes
Da nossa vida primeira,
Foram a luz derradeira
Das nossas crenças perdidas.
5
Tão terna como a saudade
No trio chão das campinas,
Tão meiga como as boninas
Aos raios do sol de Abril.
No gesto grave e sombria,
Como a vaga que flutua,
Plácida a mente - era a Lua
Refletindo em Céus de anil.
6
Suave o gênio, qual rosa
Ao despontar da alvorada,
Quando treme enamorada
Ao sopro d'aura fagueira.
Brandinha a voz sonorosa,
Sentida como a Rolinha,
Gemendo triste sozinha,
Ao som da aragem faceira.
7
Escuro e ledo o semblante,
De encantos sorria a fronte,
— Baça nuvem no horizonte
Das ondas surgindo à flor;
Tinha o coração de santa,
Era seu peito de Arcanjo,
Mais pura n'alma que um Anjo,
Aos pés de seu Criador.
8
Se junto á Cruz penitente,
A Deus orava contrita,
Tinha urna prece infinita
Como o dobrar do sineiro;
As lágrimas que brotavam
Eram pérolas sentidas,
Dos lindos olhos vertidas
Na terra do cativeiro.
ANTOLOGIA DA POESIA PAULISTA II. Org. Domingos Carvalho da Silva, Oliveira Ribeiro Neto, Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Comissão Estadual de Literatura, Conselho Estadual de Cultura, 1960. 173 p. 16x23 cm. Inclui Errata. Impresso na Imprensa Oficial do Estado.
Ex. bibl. Antonio Miranda
OS CHAFARIZES DE SÃO PAULO
São seis horas e meia.
A chuva cai a potes.
Passam os cidadão acomodados
Nos seus amplos capotes.
Vão cabisbaixos, tristes e molhados.
Senhores do Governo,
Que estais aí enxutos e quietos,
Na missão doce de zelar do povo;
Vós que sois filhos, netos e bisnetos
De grandes patriotas,
Olhai para este inferno.
Mandai guardar a chuva, que Deus dá,
em grandes caldeirões,
Para pô-la depois nos chafarizes.
Senão, em vindo a seca, a maior parte
Destas populações
Há de atirar, aos olhos e narizes
De vossas excelências,
As suas respeitosas maldições.
Vós, cujo ofício é produzir artigos,
Em prol das providências;
Vós que amais enquanto elas têm "figos";
Vós, chefes cabalistas,
Ponde em seguro a sêde dos paulistas.
(O Polichinelo – 1879)
( Tradições se Reminiscências Paulistanass
Afonso de Freitas – p. 28)
*
Página ampliada e republicada em outubro de 2022
Página ampliada e republicada em março de 2017