1.
Louco, eu sou um louco, me calo
nada mais digo.
2.
Louco, o homem está louco, me calo
nada mais digo.
3.
Louco, o mundo está louco, me calo
nada mais digo.
4.
Louco, deus está louco me calo
nada mais digo.
5.
nada mais digo.
EFEITO
deixou o copo vazio
a garrafa vazia
no balcão do bar
e saiu
confusamente
atravessou
ruas e avenidas
e
morreu atropelado
na madrugada anterior,
LAVRA
no espelho
a imagem lavrada na face
na face
o sofrer lavrado na pedra
na pedra
o poema lavrado na imagem
na imagem
a morte lavrada nos olhos
nos olhos
o brilho do sangue/da morte
na morte
questão de tempo.
TRANSIÇÃO
demônios
rasgam
ferem
distorcem
o cerne
dos sons altissonantes
deus é ouvinte
e
seu útero
ébrio de SPQR
rompe-se
descarregando cinzas
sobre os céus
de Washington DC
CONCLUSÃO
o poeta
é um parvo
pois
julga mais importante
encerrar a vida
em quatro ou cinco versos
do que vive-la
como fazem as pessoas de bom-senso
POEMAS DE FEIRA
BECO DE MOCÓ
o intelectual
e seu romance sempre inacabado
a farmácia de cumpadinho
e os velhos genecocos
suspirando pelas tristes samambaias
já apodrecidas
juventude e saudade
BECO DA ENERGIA
os copos
ainda guardam as marcas
dos lábios gastos pelo tempo
alegria e tristeza
varando a marechal deodoro
RUA DIREITA
posto que faziam amor
em plena rua
foram apedrejados
sem dó nem piedade
o terno em farrapos
do artista da radio sociedade
o violão
e a vontade de morrer de aristeu queiroz
SÃO JOÃO
o cálice de licor
e a bela pedrada
no grande balão amarelo
MICARETA
meu padrinho
e seu certeiro pontapé
minha tia
uma onça em prantos porque puxaram o seu rabo
minha mãe
o guaraná e a quarta parte da maçã
depois
o medo de quebrar o óculos
na frente do trio elétrico
MIRANDA, Iderval. Festa e funeral. Salvador: Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1982. 117 p. (Coleção dos
Novos, Série Poesia, V. 8)
INVERNO
o círculo eterno do silêncio e do medo
a velhice a chuva a lucidez
o desejo
deus e todas as questiúnculas da
poesia tupiniquim
BECO DO MOCÓ
o intelectual
e seu romance sempre inacabado
a farmácia de cumpadinho
e os velhos gonococos
suspirando pelas tristes samambaias
já apodrecidas
juventude e saudade
CLASSIFICADO
vende-se
por motivo de viagem
oito testículos e dois livros de poesia
CRÍTICA LITERÁRIA
a poesia banha-se naturalmente
na fonte eterna do sofrimento humano
eles não sabem disso
e a procuram no circo das pulgas em paris
HERA 20 – Abril 2005. Direção: Roberto Pereyr. Capa: Juracy
Dórea. ISSN 9191-1065 Ex. biblioteca de Antonio Miranda
COMO SE FOSSE UM TANGO
(Última versão)
todas as sementes do nada
e a sempre falta.
COMO SE FOSSE UM TANGO
(Segunda versão)
pequenas fantasias dispostas na ferrugem do tempo
tremores de voz, alguns poucos soluços
meias palavras, profundos silêncios
sombra, réstia de luz
segredos por trás da cortinas
todos os pecados do kama sutra
banho e purificação, trezentas ave-marias e quatrocentos
[padres-nossos
fogo, vulcão, tormento, sublimação
palavra escrita, código e permanência
abismo, salto, espera
última chama, adormecer, razão
todas as sementes do nada
e a sempre falta.
COMO SE FOSSE UM TANGO
(Primeira versão)
O que quer você?
O estojo das pequenas fantasias
Dispostas na ferrugem do tempo?
Nada a dizer. Larga é a distância.
O que quer você?
Sombra, réstia de luz,
Os segredos por trás das cortinas?
Nada a guardar. Larga a distância.
O que quer você?
Todos os pecados do kama sutra,
A purificação no banho ungido em trezentas aves-marias e
Quatrocentos padre-nossos?
Nenhuma salvação. Larga é a distância.
O que quer você?
Ainda o fogo, o vulcão, o tormento
A sublimação pela palavra escrita,
Inodora, comedida e secreta?
Nenhum sinal. Larga é a distância.
O que quer você?
Novamente o abismo, o salto, a espera.
A chama, o adormecer, a razão?
Nenhum nada. Larga é a distância.
*
Página ampliada e republicada em março de 2024.