O MENINO E O MAR
Era a primeira vez
Que o tinha ido ver o mar.
Todo alegre, de calção,
Peito nu e pé no chão.
Quando viu tanta água
Fazendo barulho
Sem parar, disse:
— Pai, me dê a mão.
RIO MORTO
Vejo tua face invisível
Na claridade das águas,
Espumas lavadeiras nas pedras
Diversicoloridias de roupas.
O céu azul de nuvens mansas.
A lua derramando prata
No areal deixado pela cheia.
Eu sou aquele menino
Que engoliu tua piaba
Para aprender a nadar.
Eu sou aquele menino
Que pegou tuas borboletas
Nos barrancos voando em bando
Eu sou aquele menino
Que sentiu com tuas boninas
A proposta livre da vida.
Eu sou aquele menino
Magro, esperto, traquino
Em tua paisagem luminosa.
Não havia, amor, dúvida,
Ares sombrios pegajosos
Cobrindo tua ilha com tesouro
Guardada por almas de piratas.
Nessa manhã de banho ausente,
Susto nos peraus e remansos,
O sol sem vidrilhar a correnteza,
Tristes meus olhos testemunham
Tua descida pobre e monótona.
Tua morte lentamente com sede
Inventada nas bocas de vômito...
Cachoeira o teu nome
Do rio que chora água.
DUNAS
Ilumino-me
de imenso.
Ungaretii
No sempre
Do vento.
No agora
Do silêncio.
Iluminado
Em solidão.
O EVENTO TERNO
Sentido não haveria
Do aroma sem canto.
A aderência perfeita
Toca o mistério,
A natureza se impõe
Na luz deste céu sonoro.
Na nervura da pétala,
Tremor translúcido,
O pássaro tece e acontece.
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Cyro de Mattos
VIAGRÁRIA
São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1988. s.p.
DA ESTRADA
Eu que me sei
casco no calendário
temporal despenho
estrias no passo
atoleiro assombração
no açoite mapa brabo
compartilho o empaco
de suor e solidão
quanto mais viajo
DO RESUMO
O passo de légua
meu batismo
o rosto cabisbaixo
meu bocejo
assovio em andadura
me constato e sigo
lenço na testa
canga no crepúsculo
aqui chego
no armazém ao largo
de amêndoas pálidas
e igualdade de peso
NA ODE AO COQUEIRO
Palmas ao céu
de quem em oração se purifica
Sal enraíza
doce unidade em caixa de surpresa
Viga polida
de quem se banha em suave maresia
Fortim vegetal
diálogo destamanho com outro verde
Cabelo de fúria
quando pulso se despedaça ao vento
Filtro de sol
pontas de estrela em convívio de lua
Corda de música
murmuras asas na calidez de beijo aéreo
Abano de praia
iluminada emoção de retreta aos domingos
Verde escalada
linha telúrica a seguir outra linha
TEXTS EN FRANÇAIS - TEXTOS EM PORTUGUÊS
MATTOS, Cyro de. De tes instants dans le poème: poésie bilíngue portugais-français. Traduit du portugais (Brésil) para Pedro Vianna. Paris: Éditions du Cygne, 2012. 87 p. *Collectionn “Poésie du monde”. 14x21 cm. ISBN 78-2-84924-294-0 Col. A.M.
Lieu
Bien qu'il ne soit
Qu'un grain dans le désert
Le poème est mon lieu
Là où je risque tout.
Il irrigue mes veines
Comme la pluie la terre
Avec ses mille langues.
Ancien, si ancien,
II me proclame captif
De la solitude solidaire
Disant les silences.
Sans cette façon
D'être fleur et vent,
Rêve et musique,
Un seul mot, l'amour,
Absence d'étonnement,
De larme, de baiser,
De rire, d'épitaphe,
Absence de sens.
Lugar
Ainda que seja
Um grão no deserto
O poema é meu lugar
Onde arrisco tudo.
Irriga minhas veias
Gomo a chuva a terra
Em suas mil línguas.
Antigo, tão antigo,
Anuncia-me cativo
Da solidão solidária
Dizendo silêncios.
Sem esse jeito
De ser flor e vento,
Sonho e música,
Palavra só amor,
Não há o espanto,
A lágrima, o beijo,
O riso, o epitáfio,
Não há o sentido.
Chauve-souris
Ma voix est la voix
qui porte la forêt sombre
mon aile est l'aile
qui se mesure à la nuit
ma faim est la faim
qui vole aveugle effarouchée
mon vers est l'envers
qui me porte en rut et en ténèbre
ma quête en quête de moi
se révèle sur la face obscure
Morcego
Minha voz é a voz
Que carrega a mata escura,
Minha asa é a asa
Que peleja contra a noite,
Minha fome é a fome
Que voa cega e assustada,
Meu verso é o inverso
Que me carrega em cio e treva,
Minha busca em que me busco
Se revela na face obscura.
La Roue du Temps
J'ai élevé des lucioles
Pour les voir la nuit
Briller dans la chambre.
J'ai nagé comme un poisson agile
Dans les eaux le plus claires
Du Fleuve aux Eaux Douées.
Tel un oiseau
J'ai pris chaque envol
Avec le vent le plus haut.
J'ai marché comme une bête en liberté
Sans avoir peur de rien
Sur les chemins de la brousse.
Mais l'enfance a la saveur
D'un fruit qui finit
A l'âge des hommes.
A Roda do Tempo
Criei vaga-lumes
Para vê-los à noite
Brilhando no quarto.
Nadei como um peixe ágil
Nas águas mais claras
Do Rio de Agua Doce.
Como um pássaro
Tive cada voo
Com o vento mais alto.
Andei como bicho solto
Sem ter medo de nada
Nos caminhos do mato.
Mas a infância tem o sabor
De uma fruta que termina
Na idade dos homens.
MATTOS, Cyro de. Ecológico. Viseu, Portugal: Pàlimage Editores, 2006. 98 p. 14,5x21 cm. Capa: Vincent Van Gogh: “Seara com ciprestes”. “ Cyro de Mattos “ Ex. bibl. Antonio Miranda
Tropas
Vinha o vento dizer
Daquele silvo,
Perene de guizo
A manhã de música.
O ouro dos cascos
Em chão de cascalho
Aqui desta curva.
Como flor na poeira
Com o amante festivo
Das ancas do tempo
Por que não retornam?
Pluviário
Precisou desabar
A dor do mundo
Nos ombros diluvianos,
Se achar precário remo
No desconhecido rumo.
Com águas ao redor
Ainda não aprendeu
Que braço ao abraço
Entre ventos em aflição
A rota fica mais fácil.
MATTOS, Cyro de. Canto a Nossa Senhora das Matas. /Gesang auf Unsere Liebe Frau Van der Wäldern. Tradução Curt Meyer-Clason. Ilustração de Calasans Neto. Salvador, BA: Fundação Casa de Jorge Amado, 2004. 159 p. ilus. (Col. Casa de Palavras) Texto em Português e Alemão. “ Cyro de Mattos “ Ex. bibl. Antonio Miranda
VEREDAS
Havia os que penetravam a mata escura,
Havia os que improvisavam moradas,
Havia os que derrubavam os paus grandes,
Havia os que brigavam com onça,
Havia os que semeavam o capim das pastagens,
Havia os que pisavam em cobra,
Havia os que caminhavam com as estrelas,
Havia os que sonhavam com a lua.
Não foram esses com mãos de madeira grossa
que em léguas de terra amarga
de sol a sol na primeira planta
colocaram na bainha o punhal da noite escura?
MATTOS, Cyro de. Cancioneiro do cacau: epopéia e mistérios da civilização do cacau na Bahia, de sua origem aos dias atuais. José Haroldo Castro Viera: pesquisa iconográfica. “Prêmio Nacional de Poesia Ribeiro Couto da União Brasileira de Escritores, para livros inéditos, em 1997. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 281 p. 16x23 cm “ Cyro de Mattos “ Ex. bibl. Antonio Miranda
CANOA
Açoitada no temporal.
Romaria e oferenda
no colo da Mãe d'Água.
Pegando o peixe.
Cruzando o perau.
Trazendo a feira.
A galinha, a semente,
o porco, o cão.
Correio das águas.
Levando o cacau.
Tomando banho de prata.
Remanso em carícia de lua.
Deslizando como folha
no amanhecer fundamental.
TEXTOS EM PORTUGUÊS - ESPAÑOL
MATTOS, Cyro de. Onde estou e sou. Donde estoy y soy. Brasília, DF: LER Editora, 2013. 120 p. 14x21 cm. ISBN 978-85-64898-36-3 “ Cyro de Mattos “ Ex. bibl. Antonio Miranda
De minha paisagem
A cada novo amanhecer
As sombras do tempo.
O autor de memórias.
A cada queda do sol
O passageiro da agonia..
A gaveta inevitável
Ó claro verso no jardim
E a separação escura
Sob o peso do mistério.
Para o tudo e o nada
A consciência acusa-me
Na saudade de cada coisa
De acenos da manhã
E sonhos desmanchados
Com sobras este exílio.
De mi paisaje
A cada nuevo amanhecer
Las sombras del tempo.
El autor de memorias.
A cada crepúsculo
El pasajero de la agonia,
El cajón inevitable.
Oh claro verso en el jardín
Y la oscura separación
Sobre el peso del misterio.
Para todo y para nada
La consciencia e acusa
En la nostalgia de cada cosa.
De gestos de la mañana
Y sueños desmanchados
Con restos de este exilio.
Semáforo
Quem socorre esse marujo
De ilhas e milhas, redes
E arpões? Quem escuta
Esses gritos na goela
Das águas, no verdor
Homicida de incertezas
Pesadas por salinas
E desvãos? Quem enxuga
Essa chuva batendo
No mastro fuga e lamento,
Busca e encalhe, sermão
E deserto, insônia
E farol? Quem espanta
Essas sombras de gaivotas
Certeiras e elucida
Essa aurora nas vagas
Cantantes de peixe e anzol?
Semáforo
¿Quién socorre a ese marinero
De islas y millas, redes
Y arpones? ¿Quién escucha
Esos gritos en la garganta
De las aguas, en el verdor
Homicida de incertidumbres
Pesadas por salinas
Y esconderijos? ¿Quién seca
Esa lluvia golpeando
En el mástil fuga y lamento,
Búsqueda, y encalladura, sermón
Y desierto, insonnio
Y faro? ¿Quién espanta
Esas sombras de gaviotas
Certeras y elucida
Esa aurora en las olas
Cantantes de pez y anzuelo?
MATTOS, Cyro de. Poemas iberoamericanos. Coimbra, Portugal: Palimage, 2016. 74 p. Apresentação por Carlos Felipe Moisés. ISBN: 978-989-703-147-2 Ex. bibl. Antonio Miranda
Submerso no curso invariável
deixo que vá meu verso-água
[...] solidões que me atravessam.
“O poeta Cyro de Mattos volta agora a público, com este Poemas ibero-americanos, coletânea que reafirma o que sua poesia tem de mais regional e, simultaneamente, de mais universal.”
“A referência a “avenidas” enseja uma observação a respeito do conflito campo x cidade ou Natureza e Civilização, na poesia de Cyro de Mattos, um conflito latente, mal insinuado neste Poemas iberoamericanos. Seus versos mais tocantes e inventivos, como os até aqui transcritos (e muitos outros poderiam ser acrescentados) parecem brotar espontaneamente da terra, do ar, das águas, de onde o poeta extrai a massa vocabular e as imagens “campestres” que formam a substância de quase todos os poemas. Já o cenário urbano não desperta nele a mesma comovida empatia de que é alvo a paisagem natural. / O poeta não esconde sua preferência pelo campo. Não chega a ignorar a cidade, mas esta aparece muito escassamente, quase sempre só de passagem.” FELIPE MOISÉS
Mares de Ilhéus
Vozes duma canção
Nas vagas do verde.
Por entre os azuis
Batem, voltam, batem
Contando minha história.
Vejo em aflição o mar
Na barra de Ilhéus.
Afogam-se as ondas
Dos que silenciam
Com o navio Itacaré.
Todo esse desespero
De índios nadadores
Mergulha no sangue.
Bebem o extermínio
Ventos, luas e marés.
No Engenho de Santana
África agora se atreve
Na certeza das manhãs,
Batucam que batucam
Tambores sem cambão.
Rio acima o sonho fluis,
Ondas da vegetação
Inundam o olho azul
Animado pelas galhas
Do príncipe europeu.
Tudo que sei de mim
Por terra, ar e mar
Flutua nas espumas,
Na clave dos ocasos
Vem de longe cantando.
Poeta Rafael Alberti
Ó marinheiro na terra
Com as insígnias do sonho.
Os campos da infância
Nos idos leves do vento,
Ramos que a pomba leva
Contra as garras da guerra.
Vejo no barco da poesia
Rimas que não se apagam
No tempo a cantar a vida
Mais o outro mais o mundo.
Da forja que ilumina tanto
Terra e mar não são em vão,
Razão do grito que lancina
Com o poeta Rafael Alberti.
Toledo
Rendo-me aos ares de Toledo.
Rendo-me à visão que é sensação
De fortaleza impenetrável,
Muralhas elevadas ao redor
Da cidade no topo da rocha.
Um museu sob o claro sol
Engastado na Idade Média.
Torres longe dentadas onde
Outrora ficaram sentinelas,
A ronda com espada e lança.
Noites expectantes sob a dura
Vigília à espreita da morte.
Um menino que não esqueço
Lembra os filmes que assistiu
Na hora alegre de sua cidade.
Nada era melhor no mundo,
No cinema a ovação do amor,
No final o bem vencia o mal.
Ivanhoé, Os Três Mosqueteiros,
Os Cavaleiros da Távola Redonda,
Heróis com glória, ídolos eternos,
Defensores de cidadelas, ideais
Elevados, façanhas incríveis.
Conquistava-se o coração do povo,
O amor impossível da filha do rei.
Perco-me por entre castelos
Com diferentes historias.
Na aventura com amigos de lá,
Nessa viagem feita de instantes
Sempre agarrados à alma.
POEM IN ENGLISH & PORTUGUÊS
NEW BRAZILIAN POEMS. A bilingual anthology after Elizabeth Bishop. Translated & edited by Abhay K.. Preface by J. Sadlíer. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2019. 128 p. 16 x 23 cm. ISBN 978-85-7823-326-6
Includes 60 poets in Portuguese and English.
CYRO DE MATTOS
Dunes
I illuminate myself
with immensity.
- Ungaretti
During ever presence
of wind.
During ever now
of silence.
Illuminated
in solitude.
Dunas
Ilumino-me
de imenso.
- Ungaretti
No sempre
do vento.
No agora
do silêncio.
Iluminado
em solidão.
TEXTO ITALIANO
MATTOS, Cyro de. Il bambino camelô. Ilustrazioni di Zéflavio Teixeira. Traduzione di Antonella Rita Roscilli. Cantdrano (RM): Gioaracchino Onorati, 2018. 48 p. ilus. ISBN 978-88-255-0844-4