CLAUDIA BARRAL
Nasceu em Salvador, Bahia, em 1978. É poeta, atriz e dramaturga. Seus textos mais conhecidos são O cego e o louco e Cordel do amor sem fim.
Extraído da revista
POESIA SEMPRE, Número 29, Ano 15, 2008, edição Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Pequena valsa para o funeral das horas.
Se eu pudesse, minha irmã, ouvir o que ela ouvia
Quando olhava, em silêncio, os relógios, seus ponteiros a girar.
Se eu pudesse escutar o som que eles faziam,
O tempo que existia, quando o tempo costumava a caminhar.
As mulheres costumavam engordar,
Os homens desatavam a beber,
Os velhos tinham o hábito de morrer,
E o tempo não parava de passar.
Se eu pudesse acompanhar seus olhos que seguiam
As horas que morriam quando outras começavam a nascer.
Se eu pudesse escutar que o som do que ela via
Era um tal barulho imenso que podia, em silêncio, ensurdecer.
Quando ainda era cedo.
Quando ela ainda podia ficar.
Quando ela ainda queria me ver.
E o tempo não parava de passar.
A mulher
A mulher espera à abeira do cais há dias.
A vida é força que já não domina.
O tempo não é alívio e a mulher se esquece à beira do cais.
A mulher é a beira do cais há séculos.
A esperança é um erro que já não engana.
O tempo não é um consolo e a mulher vai tomando a forma do cais.
A mulher é cimento de cais há meses.
Seus deuses já partiram nas velhas embarcações.
O tempo não é sacrifício e a mulher idolatra a sua espera à beira do
cais.
A mulher é o enigma, o mar seca e a mulher persiste.
E cada vela que surge no horizonte trazendo atrás de si o possível
barco,
reacende no olhar da mulher a missão de esperar.
A mulher é a espera à beira do cais.
Os corte, os pássaros, as feridas, seu corpo. Tudo prova que o tempo
não é amigo
e a mulher é uma pedra fincada no chão do cais.
Natureza
No fundo de sua alma vive um lobo. Ele quis devorar minha alma.
Porque o lobo é o homem.
Em você mora uma pulga. Pequena, insignificante. Suja. Ela só
existe porque você a vê.
Há em você um Leão.
Em mim vira um vira-latas. Pequeno, insignificante. Sujo. Ele só
existe porque eu o vejo.
Em mim vive um animal silvestre. Ele é inocente. Se você for vil,
ele não se aproximará.
No fundo de minha alma vive uma cobra. É a mulher.
Página publicada em novembro de 2009; ampliada em março de 2018.
|