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Foto:  http://cassiacostalopes.blogspot.com

 

CÁSSIA LOPES

 

Ensaísta, cronista e professora.

 

 

HERA 1972-2005.  Antonio Brasileiro et al.. organizadores.  Salvador, BA: Fundação Pedro Calmón; Feira de Santana, UFES Editora, 2010.  712 p.  fac-símile. ilus. (Memória da Literatura Baiana).  ISBN 978-SS85-99799-14-7  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

            RAPSÓDIA DE UMA TARDE DE INVERNO

 

         O vento não sorria.
As folhas consumiam-se,
povoavam todo o espaço cinzento.
Os galhos tensos da árvores resistiam
e quebravam-se em pedaços. Outros galhos,
mais trágicos, recebiam o momento com dança.

         A rua vestia-se de solidão
e sonhava com passos.
Não se ouviam bem-te-vi nem os sons do piano,
apenas o forte pulsar das sombras.

         Foi nesse dia, às cinco horas da tarde,
a porta foi aberta e um corpo saiu
vagando sobre pedras escorregadias.
Pés e mãos explodem pelas grades,
as cerca de arame, antes tensa e fria, parte-se.
Um homem aventurou-se.
Perscrutou a janela aberta, e foi.

         No meio daquele mundo, sem intervalos
é preciso arriscar.
E não seria ele, amante das tardes,
quem temeria.

         Sim.
As esquinas perfuravam os sentidos.
Os rostos, escondidos atrás dos vidros,
pediam uma identidade.
Os manequins gritavam seus vazios nas vitrinas
e um olhar passeava.

         Andava sem chapéu.
Precisava sentir a pele enrubescer-se com o frio.
As forças da natureza chamavam-no,
encenavam um gesto, sem ensaio,
para um álbum de retratos.

         Não sabia o que desejava,
mas não estava nem à procura dos loucos,
nem dos mendigos.
Se os encontrava parados nos postes
parecia uma fatalidade.
E era legítima a gratuidade
com que atravessava as calçadas.
A absoluta mudez das casas,
o rangido das dobradiças enferrujadas,
andava e sentia.

         Havia um cheiro fétido no ar,
os lixos apodreciam nos tonéis.
A ausência dos ratos contribuía
para instaurar o abandono daquele momento.

         Um homem andava, indefinida
e perdidamente, pelas ruas de uma cidade..
Não se sabe como se chama,
o seu desejo e destino.

         Um homem, apenas ele, sai
lendo a beleza de um esgoto,
de um fio elétrico,
de uma tarde de inverno.

 

Página publicada em janeiro de 2019


 

 

 
 
 
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