A PLACA
placa presa ao poste
diz
proibido transitar carroça
por eixos e vias da capital federal
o cavalo mouco faz pelec-plec
aos motores e buzinas
a arrastar feixes de papel
o magrelo que o guia
ignora placa
e
xingamentos
desatende a placa
por desentender clamor
que não seja desespero
entende de fome
o olhar
desse homem
atento
ao lixo dos edifícios
a placa no poste
espelha
a capacidade de o homem
aplacar a fome
de forma oposta:
ao impedir o milagre
da multiplicação do lixo
em leite e pão
mata a fome
antes que seja exposta
a circular de carroça
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
tenho dúvidas
a quem interessar possa
tenho dúvidas
de manhã de tarde de noite
inda mais tarde da noite
tenho dúvidas
de tudo que posso
de um certo gosto tipo insosso
tenho dúvidas
porque tenho vocês
não peço sais e tanto faz
tenho dúvidas
tanto quanto desejos
- disso não me pejo
ah, duvidosos beijos...
tenho dúvidas
como essência e certeza
escuro e clareza
e definição de beleza
tenho dúvidas
além de medo
de peito
de-feitos
e uma certa tara por viés
duvido
quando estou certo
de estar certo
ou de estar errado
tenho dúvidas de tudo que é lado
tenho dúvidas
assim como me repito
como me refaço
dúvidas de pano, papel e aço
a grosso e a granel
dúvidas antigas, amigas e a descobrir
tenho dúvidas, pô!
pra onde devo deslocar o sol, por exemplo
tenho dúvidas
a realizar
e a me realizar
concretas e moles
qualquer uma me bole
duvido deste poema
uso ou não uso trema?
tenho dúvidas
úmidas e secas
amargas e doces,
ávidas!
tenho dúvidas
como dívidas internas
adoro a possibilidade
de eu não dar certo
CENA DE RUA
À moda de Manuel Bandeira
dez horas da manhã
um homem arrasta-se na calçada
em frente ao prédio da reitoria
de cócoras
defeca
limpa-se com a mão direita
que esfrega em seguida numa poça d’água
no instante seguinte
o sinal abre para os carros
que fecham a cortina
do breve humano espetáculo
AS FONTES NOTURNAS
a noite possui a cidade
em leve meio tom
a cidade possui a noite
em cinco marchas
ambas possuem o encanto das fontes
desesperadamente cálidas
é quando a fome de lâminas afiadas
se apossa das bicas arfantes
que os cães fuçam raízes de begônias
(se é que existem begônias
na cidade e na noite)
para babar loucuras e mistérios
os mistérios da cidade rifados na noite
a cidade dança na noite
coreografias esfaimadas
correntes e punhais de felicidade
celebram paz
e esticam fraldas de dor nos varais
a noite é falsidade de anzóis
pós-do sol que se oferece tépido
assovio de enigmas a cada esquina
um fio invisível a costurar nós e sina
um silêncio de procissão nebula a praça
CINEMA MUDO
o mundo paira em superfícies falsas
alinhavadas de medo
de madrugada a meio
uma luz branco-azulada
treme de uma parede a outra da rua
o mundo, ali, suspenso
entre cordas desfiadas de desespero
falta um roçar de pneus
para que se inicie a dança dos postes
o asfalto benze a luz que o beija
ao fundo
esvai-se em angústia uma janela traída
um homem expecta um gato de sacanagem
babeaça insone
entre cílios gomados
um cão louquecido de expectativas
as dificuldades extremas do grito
enovelam-se também úmidas
entre lábios suspensos
em algum canto de página colegial
glórias banhadas em lavanda
apenas aguardam
ponteiros giram trôpegos
por nuvens de lama e bílis
emoções usam suspensórios
pouco elásticos
porém bem presos à garganta
da grande-angular que mira
minha esperança de acordar é frágil
O ESPELHO
de repente
soube
ler nuvens
ouvir pedras
cantar silêncios
sentir doçuras em farpas
de repente
não soube mais
o caminho da pia
o sentido das placas
ligar a luz
esperar
rir
de repente
nada mais acontecia
tudo era um só espelho
e nele você me ardia
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