CARLOS ANÍSIO MELHOR
Carlos Anísio Melhor: Nazaré das Farinhas (BA), 20.04.1935 — Salvador (BA), 20.06.1991. Funcionário da Biblioteca Municipal de Salvador, tendo trabalhado também como jornalista. Desde a década de 50 publicou poemas em revistas e suplementos literários. A maioria de seus poemas foi escrita em sanatórios de Salvador, onde esteve internado por diversas vezes para tratamento especializado. Tem um único livro publicado em vida, Canto Agônico, de 1982. O outro livro de poemas, póstumo, é de 1998, Espelho das Horas.
A PAIXÃO PREMEDITADA: Poesia da Geração 60 na Bahia. Org. Simone Lopes Pontes Tavares. Rio de Janeiro: Imago; Salvador, BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2000. 368 p. (Bahia: Prosa e Poesia) ISBN 85-312-0737-1 Ex. bibl. Antonio Miranda
A MEMÓRIA E O TEMPO
Extinta da memória, em neutros campos
Persistirás ainda. Percepção nenhuma
Logrará tua antiga presença: só a noite
Dos sentidos em que estás adormecida.
Nem a pauta onde escrevi teu sonho
De existir. Nem o fundo do mar
Nem o túmulo: não poderá conter
Forma ou sombra: o teu despertar.
Persistirás ainda, forma ou sombra,
Aura em torno de tudo em que viveste
Ou morreste: além de ti ou de mim.
Numa estrela, numa flor, no mar,
No poço: corporificação do invisível,
Para além de ti mesma é o teu despertar.
MEU CANTO DE AMOR A ENTRADA
DE MANHATTAN
Que seja por poucos minutos ainda,
Te encontras num cemitério abandonado,
Deitado sobre frias lisas lajes.
A liberdade (eu canto) quando te cerceiam,
Então nada mais vives, tudo é fingimento.
É que a liberdade tem o rosto voltado para a vida,
Só quando te sentes livre te é aprazível a gaiola
da existência,
E aceitas os muros que infindam tua liberdade.
Oh, as vezes, quantas, que preso foste:
Teus olhos deixavam lágrimas caírem,
Escutando por trás das grades
Os pânicos cantos livres, oclusos nos ramedos.
Ou aladas rosas, indo e vindo, álacres
Revoando em torno de suas irmãs nas hastes.
CONVÍVIO
Neste ano reaprenderemos o convívio
E seremos habituais, cotidianos.
Neste ano, iluminemos nosso engano:
Uma estrela, uma criança, algum sorriso.
E saberemos mentir. Poluir a presença
Com o veludo das flores. Amaciar as palavras:
"— Perdão. "Sem dizer:" Cansaço".
Seremos sós este ano, deserdados,
Crispados em estéreis solidões.
Seremos sós e nulos — amanhecidos
Numa quieta manhã de frio.
— "É uma surpresa", direi voltando o rosto
Sabemos, nossa noite é um túmulo vazio,
Mas ao jantar acenderemos nossas velas.
[Canto Agônico]
Página publicada em novembro de 2014
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