ZEMARIA PINTO
José Maria Pinto de Figueiredo nasceu em Santarém, no Pará, em 1957, mas Manaus é sua casa desde criança. Além de economista, é poeta de sólida formação literária. Atuou como professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Amazonas. Editor do jornal poético “O fingidor”, escreve também premiados textos para teatro. Seus principais livros são Corpoenigma (1994), Fragmentos do silêncio ( 1996), Música para surdos (2001) e Dabacuri (2004).
“Música para surdos é um livro estruturado como uma partitura – seqüência de composições eivadas de intensidade humana e rigor na tessitura de seus cantos.” TENÓRIO TELLES
Canção dos novos tempos
Visitar os cantos de Zemaria Pinto pode ser a constatação de que “nas águas salobras da história” (A. Bosi) ainda não se perdeu um certo sabor do mito e da poesia. Também, que a memória do flâneur e a sabedoria histórica resistem ao gesto tentador da desesperança num violento mundo fragmentário e virtual. Senão observemos o escorrer da sua fala poética convidando-nos: “Dá-me tua mão./ Ainda há tempo”, na bela Canção de Amor de J. Sebastião.
Um foco vivíssimo irradiando toda uma ordem de motivações existenciais que produz, entre outras, uma nota longuíssima na canção do tempo histórico do leitor. Capaz, talvez, de atiçar no imaginário a dinâmica de um País das Águas e seus mistérios (“a bruma cai em flocos e tem gosto de açaí”). Grandes e rápidos rios poéticos espalham-se muito, dentro do mar, e conservam doces as águas ali lançadas pela suave violência do curso.
“A bruma eliotiana” do poeta resiste, inventando o caos que se recorta no horizonte rionegrino-amazônico fiando a trama. Tão antiga trama do tecido da utopia. Urdindo, com os silêncios da “música para surdos”, quem sabe, uma “ordem a decifrar” saramaguiana. Novos tempos na poesia do amazonasparaense.
Alfim, o poeta conduz passo a passo o leitor ao delicado e assombroso universo do abismo das interrogações (Ah, Manaus, Manaus, (...) onde estão tuas crianças, (...) teus velhos?). Onde?. O abismo das interrogações sem resposta, que se encerra na invenção poética, resistindo ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso.
DONALDO MELLO , tarde chuvosa em Brasília, 15mar06
Canção de Amor de J. Sebastião
Sigamos então, tu e eu,
enquanto Manaus se estende sob o céu
como um paciente anestesiado sobre a mesa.
Caminhemos pelas mesmas ruas,
quase desertas a estas horas,
sob uma bruma eliotiana,
contando as fachadas dos hotéis de conveniência,
ouvindo ao longe a doce música das sirenes.
Ah, Manaus, Manaus,
o mais vil de teus poetas
vomita sua sintaxe indefinida
arrastando-se no lodo da Cachoeira
em busca de alguma felicidade provisória
ou uma dose violenta de qualquer coisa
mergulhando a alma nessa tenra madrugada de outubro.
Abraço o poeta e o beijo que deposito em sua boca
é amargo e fedido.
Peço uma tangerina e mais outra
e o cheiro que toma o ar me embriaga
mais que toda a cerveja e toda a urina do banheiro fétido.
O poeta sussurra alguma coisa sobre
as moças assassinadas
da praia da[Ponta Negra
e fala de espectros e histórias de amor
e eu mal consigo perceber o movimento de sua língua de chumbo.
Tomo suas mãos nas minhas e ele adormece
murmurando preces pelas moças assassinadas.
Ah, Manaus, Manaus,
quanta poesia desperdiçada
nas flores que o rio insiste em devolver à areia
num invólucro de espuma.
Onde estão tuas crianças, cidade?
Onde estão tuas mulheres, teus velhos?
E tuas úmidas meninas túmidas?
Em que longínqua guerra fratricida eles sucumbiram?
Ah, maninha,
não me curvo às urgências do teu sexo
ou ao discurso mudo dos teus bêbados.
Seria a poesia uma doença tropical?
A bruma cai em flocos e tem gosto de açaí.
Precisamos beber algo quente
que nos anuncie a manhã,
como um galo ou uma fábrica.
Dá-me tua mão.
Ainda há tempo.
(O eu e os outros) exercício n° 3
É madrugada. O ritual dos parvos
faz-se preciso e lento. Peregrino,
meu corpo vertical é um fantoche
cambaleando em cordas invisíveis.
Já não sei quem sou. Naves de papel
num circunscrito céu circunvoluem
entre as amarras de concreto gris
e bandos vira-latas de mendigos.
De repente, uma pomba rasga o ar
num pardacento feixe de luz. Não,
nenhum olho fixou aquele instante,
preciso instante feito de lampejos.
De mim desperto, silencio o grito
que se formara exausto no meu peito:
(Sob as trevas de setembro) exercício n°16
Setembro não tem sentido,
nas mãos
encanecidas e nas cãs vibráteis
à força do vento,
nós invisíveis
de forcas plantadas
sobre o caminho.
Setembro não tem sentido,
nas pedras
que o tempo acumulou com precisão
sob nossas retinas
tão fatigadas
e nossos pés vegetais,
tão inúteis.
Os dias fastos são lembranças fúteis
forjadas na temperança
do ocaso de nossas últimas desesperanças.
A nós nos resta agora esse torpor
mal encoberto em raras alegrias:
nonadas.
Setembro não tem sentido.
Poemas transcritos de Música para surdos, Valer, 2001
(bunda)
luas hemisféricas
sob o sol resplandecente
- altar da paixão
...
castelos erguidos
em terras de fantasia
- volúpia e vertigem
...
ondas cavalgadas
nos limites do infinito
- relâmpago sob o sol
(poema de Corpoenigma, transcrito da antologia Poesia e Poetas do Amazonas, organizada por Tenório Telles e Marcos Frederico Krüger, publicada pela Valer em 2006) |