QUINTINO CUNHA
José Quintino da Cunha (Itapajé, 24 de julho de 1875 - Fortaleza, 1 de junho de 1943), advogado, escritor, humorista e poeta cearense. Bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Ceará em 1909, onde começou a exercer a profissão de advogado criminalista. Foi deputado estadual entre 1913 e 1914.
"Autor perdido em sua própria construção", assim Marcos-Frederico Krüger define a obra poética de Quintino Cunha, autor do poemário "Pelo Solimões", de 1907, de interesse não apenas literáriO mas sobretudo documental, histórico, revelando uma visão participante daquela momento extraordinário da vida amazonense. Cearense de nascimento, era parte de uma população de migrantes que povoaram a Amazônia no auge da exploração da borracha e que presenciaram as misérias e as opulências daquela ocupação. Livro irregular, de altos e baixos, partindo de um romantismo enraizado, contornando os assomos parnasianos do momento, oscilando entre o positivismo ainda reinante mas com uma fé religiosa contrastante. Para Assis Brasil, "para não fugir a estética de sua época, imposição do meio literário e dos contemporâneos, a poesia de Quintino Cunha presta tributo ao romantismo e ao soneto decassílabo de inspiração parnasiana, mas com um destaque especial: o poeta usa expressões e locuções populares, o coloquialismo". Combinando telurismo e universalismo, cientificismo e lirismo. "As contradições que apresenta não são as que se afirmam como antíteses, figura que dá vigor à produção lírica, mas aquelas que o indiciam como um autor perdido em sua própria construção, sem saber qual o caminho a seguir nas bifurcações que se lhe aparecem", assevera Krüger na orelha da segunda edição "revista" do livro, lançado pela Valer Editora, de Manaus, em 1999, na Coleção Resgate, coordenada por Tenório Telles.
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De
Quintino Cunha
PELO SOLIMÕES
2a. edição revista
Manaus: Editora Valer,1999.
260 p. (Col. Resgate, 12)
ISBN 85-86512-15-X
Com o apoio do Governo do Estado do Amazonas
A PIRACEMA
Aqui é um lago, feito de água clara;
Visualmente negro se mostrando;
Calmo que sobre si passa uma igara,
Como no espaço um passarinho voando.
Sol, das dez da manhã. O amor compara
Este quadro à virtude. Um vento brando...
Mas lá fora no rio. Ele aqui pára,
O lago, a mata e o Céu quietos deixando.
Do anivelado espelho d'água, apenas
Manchado levemente por pequenas
Nódoas que lhe colorem, nódoas cérulas,
Aos bandos, as sardinhas vão surgindo,
Frágeis, cambiantes, rápidas fugindo,
Como travessas conchas madrepérolas.
VISTA IGNOTA
Há um ruído infernal, dentro do leito
Do rio. A lontra rosna. A capivara
Espavorida esconde-se no estreito
De um paraná, que a enchente ali formara.
O jacaré, levando tudo de eito,
Foge, estrugindo horrivelmente; e, para
Mais aumentar o grande ruído feito,
O rio inteiro se convulsionara...
E, enquanto em medo tudo se alvorota,
Nesta paisagem visualmente ignota,
Mas facilmente do índio percebida,
Uma anta firme, calma que arrebata,
Corta o fundo das éguas, distraída,
Como se fosse andando pela mata!...
VAZANTE
O mês de julho mostra um tempo novo
Em tudo: à margem pousa alegre bando
De borboletas, cor de gema de ovo,
O declive das águas anunciando.
Da floresta central, de lá de ignotas
Matas, voltam, da imensa arribação,
Os maguaris, as garças e as gaivotas,
- A beleza das praias no verão!
E o uirapajé cantando, e a saracura
Cantando, em fim o plácido barulho
Das aves todas, dá-nos a envoltura
Dessas manhãs esplêndidas de julho.
A própria vida mais amor exalta,
Nesses dias magníficos, sem-par,
Quando mais se ouve o canto da pernalta,
No alegre anseio de nidificar.
EPÍLOGO
Só de um lance de vista a ideia morre,
Sem ver no Solimões grandeza alguma;
Porque assim de relance, mal parece
Um vasto espelho de moldura verde
Onde o Céu tem costume de mirar-se!
Vede-o alternadamente:
É um mar tranquilo
Onde passa um navio. Agora, é a praia
— Branca toalha de Deus ao Sol corando,
Uma igara, que o desça, a vida lembra
No declive do mundo enfurecido,
E ora tão calmo, das paixões humanas.
A garça que ali pouse, é o ponto branco
Da pulcra proposição: — a ave é a poesia.
Se porventura o vento o agita, um coro
De banzeiros, em lágrimas desfeito,
Ecoa ao longe, no íntimo das matas!
O louro-rosa, o cedro, a samaumeira,
Quando derivam na voraz corrente,
Lembram destroços de cruel derrota
Da mais tremenda luta pela vida.
Quando à margem fervilha a piracema
De jaraquis, pacus, mandis, sardinhas,
Frágeis, cambiantes, madreperoladas,
Vezes subindo à flor d'água, e de novo,
Quando o dourado ou o boto lhes persegue,
Caindo como bátegas de chuva
Na coberta de zinco das barracas,
Igualando-os, no meio, a piraiua
Como a queda de um'árvore na mata,
Ou mesmo a pirarara, arremedando
As lavadeiras quando batem roupa;
Quando estrugindo o jacaré bubuia,
Na defesa dos filhos pequeninos,
Se humana voz em terra os arremeda;
Quando, à mercê da simples correnteza,
De bubuia, nas árvores que descem,
As gaivotas também descem reunidas,
Como um bando de náufragos, que buscam
Salvação nos destroços, que flutuam,
Da galera infeliz da humanidade,
Se tal galera a mata imensa fosse;
E quando outras no ar recurvam voares
E o corta-água e a ariramba gaivoteiam,
Assim, sim, já se pode ter em mente
Que o território desse rio imenso,
Sem marcos miliários confinantes,
É um país ideal, cheio de assombros,
E de verdades e d'encantos cheio!
Vede-o profundamente:
No seu seio
Milhões de seres encantados moram,
Mitologicamente idealizados:
De Uirará, de Unutara, de Honorato,
À virginal Ararambóia, à Iara,
Iara — a formosa imperatriz netúnica,
A sereia fluvial, por cujo canto,
Perdera a fala a fauna ictiológica,
Subjugando-a, vencendo-a, dominando-a,
Como o próprio Tupã, do alto de Iuaca
Na pátria pois das ilhas flutuantes,
Onde Boiaçu nos dera a noite.
E onde Membiíra rosna como a onça,
Quando os botos suspiram como gente,
Os botos, filhos da encantada corte,
Nesse canto, patrícios, a poesia
Não flutua, mas vive como os peixes!...
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Dá-me, Amor Pátrio, com que agora o veja
De um moroso galerno, espanejado,
Como uma taça imensa, onde Iara beba
À saúde do Sol que nos aclara,
Com esse licor original de sombras
— Sombras de nuvens, dissolvidas n'água!
CUNHA, Quintino. Pelo Solimões : versos norte-braslleiros. Paris: 1907.
Encontro das águas
(Rios Negro e Solimões)
Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este
É o rio Negro, aquele á o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
Como as saudades com as recordações.
Vê com se separam duas águas.
Que, se querem reunir, mas visualmente;
É um coração que quer reunir as mágoas
De um passado, às venturas de um presente.
É um simulador só, que as águas donas
Desta terra não seguem curso adverso,
Todas convergem para o Amazonas,
O real rei dos rios do Universo;
Para o velho Amazonas, Soberano
Que, no solo brasílio, tem o Paço;
Para o Amazonas, que nasceu humano,
Porque afinal é filho de um abraço!
Olha esta água, que é negra como tinta,
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.
Aquela outra parece amarelaça,
Muito, no entanto, é também limpa, engana;
É direito a virtude quando passa
Pela flexível virtude quando passa
Que profundeza extraordinária, imensa,
Que profundeza ais que desconforme!
Este navio é uma estrela, suspensa
Neste céu d’água, brutalmente enorme.
Se estes dois rios fôssemos, Maria,
Todas as vezes que nos encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós que nos amamos!...
(Pelo Solimões)
Quintino Cunha – poesia humorística – poesia satírica
QUINTINO CUNHA ― civilmente José Quintino da Cunha ― conhecidíssimo em todo o Brasil, sobretudo nos Estados nordestinos, advogado e poeta, possuía a virtude de improvisar discursos, versos e trocadilhos, com tal facilidade, que estarrecia a todos.
Cearense de nascimento, cumpriu o destino do seu povo: viajou Séca e Méca. Durante cinco anos consecutivos esteve embrenhado nas selvas amazônicas e, de lá daqueles confins misteriosos, transportou-se para a Europa, onde publicou em Paris, o seu formoso livro “Pelo Solimões”.
No velho mundo privou da intimidade de Guerra Junqueiro Emile Faguet, Edmond Rostand, Richepin Filho e outros grandes vultos da literatura universal.
Boêmio, amigo do povo, ou QUINTINO CUNHA militou na imprensa e tribuna, sempre ao lado dos desprotegidos contra as potestades ocasionais.
São de sua lavra, escritos no fim da vida, êstes mordacíssimos apólogos:
O CAVALO
― O mérito, em declínio, é sempre oriundo
de um suposto valor:
o Cavalo foi tudo, neste mundo,
desde escravo aa Senhor!
Na Arábia, foi Herói; na Grécia, Trono;
Em Roma, Senador!
Hoje, no mais humilimo abandono,
mal chega a ser Doutor!
O GATO
― O Gato, se tem fome, é assim: procura,
todo brandura,
o dono seu, pedindo-lhe comida.
Mas de uma fórma, tão enternecida,
que nos parece Gato
a sombra fiel de um candidato
pedindo votos para ser eleito...
E, quando o apanha,
que ao próprio dono ferozmente estranha,
aí é que o retrato está perfeito!
O BURRO
― Chega à feira um sertanejo
montado num Burro arisco.
E, sem pensar nalgum risco,
daquele canto não sái.
Perto, apita um trem, e o Burro
salta com tal ligeireza,
que o pobre homem, de surpresa,
desiquilibra-se e cái!
Nesse momento, a assistência,
um tanto ou quanto educado,
prorrompeu em forte assuada,
quando o matuto caiu...
E, apenas como protesto,
àquele cena, tão séria,
vendo tamanha miséria,
somente o Burro não viu...
QUINTINO tinha pavor aos ignorantes, notadamente àqueles que atingiam posição de destaque na política, na sociedade, no comércio, nas artes ou ...nas letras.
Nas oitavas abaixo reproduzidas, o poeta adverte-nos o perigo que o ignorante oferece à humanidade:
O MENTIROSO E O IGNORANTE
da mentira que êle explora.
Mas o ignorante ignora,
que ignora o que fizer.
De onde suponho, com acerto,
ser natural que prefiras
um soltador de mentiras
a um ignorante qualquer.
A IGNORÂNClA
_ Na história da teimosia,
entra a rudeza e a arrogância,
é tão forte a ignorância,
tão cruenta, tão mendaz,
que a própria Sabedoria;
de tudo, sabendo tanto,
não póde saber de quanto
o ignorante é capaz.
É imenso o trovário do conhecido epigramista cearense.
Eis algumas redondilhas, à moda popular, de sua autoria:
— O homem que se sujeita
a caprichos de mulher,
é zero escrito à direita
de uma unidade qualquer.
— Mesmo, sem subserv'ência,
quem se ampara em proteção,
aou vive dependência,
ou morre na humilhação
Refórma, de quando em quando,
segundo o meu parecer,
é uma vela se apagando
e outra pra se acender...
— O cearense, em criança,
nasce na FÉ, com verdade;
cresce e vive na ESPERANÇA
e morre na CARIDADE.
Quando foi criado o sêlo de educação e saúde, QUINTINO farpeou, com esta quadra, um advogado, seu conterrâneo, homern doente do côrpo e da inteligência:
— Um bacharel doente e rude,
quasi morreu de desgôsto,
por não pagar o imposto
de Educação e Saúde. . .
Alguns mêses antes de fechar os olhos à vida, no seu leito de dôr, o poeta brincava com a morte. Marido amantissirno, QUINTINO ditou êstes versos, de humor à Swift, ao seu sobrinho Renato Sóldon, pedindo-lhe mostrasse-os, depois, à sua dedicada espôsa, a titulo de brincadeira:
SPES UNICA
— Morto, dentro da fria sepultura,
sem te poder falar?
E tú, que me amas, bôa criatura,
indo me visitar...
Banhada de suspiros, de soluços,
desmaiada, talvez . ..
Muita vez reclinada, até de bruços,
na altura dos meus pés...
Pedindo a Deus o meu viver eterno
junto das glórias suas;
que me livre das penas do inferno,
e a chorar continúas...
Lembrando nossa vida a todo instante
repassada de dôr,
a lembrar-te que fui o teu amante,
— o teu único amor,
M al, pensando na horrífera caveira,
em que me transformei,
exausto de fadiga, de canseira,
imaginar não sei...
Para evitar essa hora amargurada,
êsse quadro de dôr, tão verdadeiro,
Deus há-de ser servido, minha amada,
que tú morras primeiro ! ...
Afinal, aos 68 anos de idade, no dia primeiro de Junho de 1943, em Fortaleza, QUINTINO CUNHA fechava os olhos à vida. Sem nada possuir, senão um grande talento e enorme cultura, êle mesmo ditou, momentos antes de morrer, o epitáfio para o seu túmulo:
— O Padre Eterno, segundo
refere a História Sagrada,
tirou o Mundo do nada...
E eu Nada tirei do mundo.
Página publicada em novembro de 2010
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