POETAS DO AMAZONAS
Coordenação: Donaldo Mello e Inês Sarmet
LUIZ BACELLAR
( 1928- 2012)
Luiz Franco de Sá Bacellar nasceu em Manaus no dia 4 de setembro de 1928. Depois de passar a infância em Manaus, foi para São Paulo e lá realizou o antigo curso Colegial. Mais tarde, no Rio, foi bolsista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, INPA, quando fez o curso de Aperfeiçoamento de Pesquisador Social, na área de Antropologia Cultural, no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, sob a orientação do Prof. Darcy Ribeiro. Voltando a Manaus, exerceu o jornalismo, foi portuário e comerciário, antes de se tornar Professor de Literatura e Língua Portuguesa no Colégio Estadual D. Pedro II e Professor de História da Música no Conservatório Joaquim Franco, da Universidade do Amazonas. Por volta de 1954, sua atividade literária se intensificou e, juntando-se a um grupo de jovens interessados no desenvolvimento cultural do Estado, participou da criação do Clube da Madrugada, cujo nome teria sido por ele sugerido. Com seu livro de estréia, Frauta de Barro, que só foi editado quatro anos mais tarde, foi laureado em 1959 com o PRÊMIO OLAVO BILAC, conferido pela Prefeitura do antigo Distrito Federal (Rio de Janeiro), de cuja comissão julgadora fizeram parte Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Seu segundo livro, Sol de Feira, várias vezes reeditado, recebeu o PRÊMIO DE POESIA DO ESTADO DO AMAZONAS, em 1968. Um dos fundadores da União Brasileira de Escritores do Amazonas, está envolvido com a escrita de poesia desde os doze anos e já teve vários de seus poemas musicados por Arnaldo Rebelo, Nivaldo Santiago, Dirson Costa e Emmanuel Coêlho Maciel. O poeta, cultor da música e do desenho, membro da Academia Amazonense de Letras, é um dos estudiosos do patrimônio artístico e cultural da cidade de Manaus, onde vive e trabalha. Além de Frauta de barro e Sol de Feira, já citados, Luiz Bacellar é autor de Quatro movimentos (Manaus, 1975), O Crisântemo de cem pétalas (em parceria com Roberto Evangelista, Manaus, 1985), Quarteto (Manaus, Valer, 1998) e Satori (Manaus, Valer, 2000).
“Luiz Bacellar faz parte linhagem de poetas comprometidos com a revelação dos mistérios do mundo, com a essencialidade das coisas e dos seres.Tendo na musicalidade uma de suas marcas definidoras, sua poesia é prenhe de imagens, de ressonâncias filosóficas e espirituais. A acuidade no tratamento dos temas e apuro da linguagem são expressivos da excelência de seu fazer poético.” TENÓRIO TELLES, em Satori
“Luiz Franco de Sá Bacellar é, sem sombra de dúvida, o maior poeta vivo do Brasil. Confirma esse fato, inclusive, a simplicidade com que esse escritor se mantém num quase anonimato, obrigando-nos a divulgá-lo, pode-se dizer que à sua revelia, para conhecimento dos nossos intelectuais. É ver para crer. AUREO MELLO, em Frauta de Barro, 4ed.
“Há um evidente talento épico em Luiz Bacellar. É a comunidade que encontra sua expressão, sua linguagem, sua fala, através de seus versos. Assim, Bacellar recria, fundando-a na história dos tempos, a função do poeta. A memória que cimenta seus poemas é ao mesmo tempo um culto ao passado e uma denúncia contra a insanidade de um presente que se autoflagela, que se auto destrói impunemente”. ANTÔNIO PAULO GRAÇA, em Quarteto.
Bacellar [Narciso que busca seu rosto no passado] é um poeta que se mira na superfície líquida da memória. Num esforço de reminiscência recupera os objetos, as formas das coisas, as fachadas arruinadas das casas, as imagens que guarda das pessoas, da cidade - Manaus - suas ruas, becos, os sons, leituras e histórias que povoaram sua infância. Contempla-se na alma de seu tempo.
Quarteto - reunião de suas obras - é um mostruário de sua produção poética, painel evocativo da excelência de sua poesia. Sua leitura é reveladora de seu aprendizado e amadurecimento, seu domínio da arte de encantar as palavras, evidente em livros como Quarteto, que dá título a esta reunião [publicado originalmente em 1963, com o nome de Quatro Movimentos], Sol de Feira (1973) e Pétalas do Crisântemo (1985). Sua obra completa é um mosaico expressivo de seu itinerário como criador. TENÓRIO TELLES, em Quarteto
Ver tb: TEXTO EN ESPAÑOL
POESIA SEMPRE - Ano 17 - Número 34.- Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional - Ministério da Cultura, 2010. 228 p. 18x26 cm. ilus. Editor Marco Lucchesi.
Haicais
Tentando pousar
no topo do chafariz
a borboleta amarela.
**
No plano longínquo
do pátio distante
a estrela cadente.
**
Na pequena tartaruga
de jade está expressa
minha louca paixão.
**
A porta arrombada...
E os ladrões levaram
toda a vaidade...
**
Na flor composta
do sofrido maracujá
as insígnias de Cristo.
**
A Mário Quintana
Meu querido poeta: a vida agora
nos separou. Definitivamente
nos ficaram teus versos. Como outrora
continuam a encantar-me. Novamente
Ao lê-los e relê-los a cada hora
uma lágrima se escapa sutilmente...
Mas eu teimo em relê-los! Muito embora
sua magia de ocasos... Se pressente
Uma saudade pálida, cantando,
que vai sonoramente murmurando
segredos nos meandros da canção...
E tu, poeta, nos comoves tanto...
E ao te relermos nos renova o pranto
qual um bálsamo para o coração.
SATORI haiku
Floresce o jambeiro:
há um tapete róseo
no chão de janeiro.
*
Sempre perseguido
o grilo fica tranqüilo
cantando escondido.
(O poeta)
*
Não sou eu que choro
vento traz num lamento
orvalho sonoro.
(Sinfonia)
*
Chuva de janeiro:
o barco de papel
naufraga no bueiro.
Soneto do canivete
Do gume aceso se cumpra
o destino de ser-quilha
e o destino de ser peixe
no ímpeto da mola oculta;
do cabo córneo se cumpra
o destino de ser concha
bivalve guardando a folha:
molusco vidrado e alerta.
Cumpra-se o ávido destino
de esfolar laranjas vivas
e fazer lascas de pinho
na timidez corrosiva
dentro do punho incrustada
da lâmina envergonhada.
Ciranda à roda de um tronco
Mangueira de minha rua
Do velho tronco enrugado
Que serves de alcoviteira
Ao casal de namorados.
O vento mexericando
Com tuas folhas assanhadas
Te arrepia as verdes franjas
Em murmúrios assustados.
As formas dos papagaios
Te pendem das galharias
Como brancos esqueletos
De duendes enforcados.
Te escorre o luar das folhas
Com seu brilho niquelado
Como um colar de rainha
Sobre um dossel desfiado.
Mangueira de minha rua
Vivo cheio de cuidados
Pela ingrata que tortura
Meu coração macerado.
E hei de quebranto e saudade
Morrer contigo abraçado.
Receita de tacacá
(para Umberto Calderaro Filho)
Ponha, numa cuia açu
ou numa cuia mirim
burnida de cumatê:
camarões secos, com casca,
folhas de jambu cozido
e goma de tapioca.
Sirva fervendo, pelando,
o caldo de tucupi,
depois tempere a seu gosto:
um pouco de sal, pimenta
malagueta ou murupi.
Quem beber mais de 3 cuias
bebe fogo de velório.
Se você gostar me espere
na esquina do purgatório.
Noturno da rampa do mercado
As luzes das barcaças sonham ventos
quando em águas propícias e serenas
no cansado ancorar brilham pequenas
em almos lucilares cismarentos ...
O rio e a noite expandem seus lamentos
e os mastros tristes são candeias plenas
de oleosas saudades e de penas
sirgando macilentos barlaventos ...
As águas encrespadas pela brisa
gravam na praia úmida do pranto
das órfãs de afogados o seu canto.
Gregoriano canto, que, em precisa
cadência, vai ecoando em cada peito:
deixai-nos descansar: tudo está feito.
Balada da rua da Conceição
Vão derrubar vinte casas O motivo
na rua da Conceição.
Vão derrubar as mangueiras
e as fachadas de azulejo
da rua da Conceição.
(Onde irão morar os ratos Os ratos e o lixo
de ventre gordo e pelado?
e a saparia canora
da rua da Conceição?
Onde irão os jornais velhos?
Onde? E as garrafas quebradas?
Pra onde os cacos de vidro?
Pra onde os cacos de telha?
Pra onde as latas de conserva
vazias e enferrujadas?)
Oh! Vede as fisionomias
As casas
desgostosas e alquebradas
das velhas casas desertas...
Oh! Vede as rugas tristonhas
das janelas dolorosas,
dos batentes desbeiçados,
das velhas portas cambadas
de gonzos desengonçados!
Vede os beirais rebentados!
Vede as calhas entulhadas
pelas folhas fermentadas
e os buracos dos soalhos
e os alpendres corroídos
e as cumeeiras caídas
e as goteiras dos telhados!
Vede o balcão derrubado
da antiga mercearia
do Seu Joaquim Remendado.
E o forno da padaria,
e o sobrado da viúva O sobrado da viúva
que era o mais alto sobrado;
as pobres pedras da rua,
já gastas de tantos passos,
empurradas pelo esforço
das raízes emparedadas.
N a rua da Conceição
já mais ninguém quer morar.
Só um tal Dr. Calango
Um certo Dr. Calango
- às vezes passa apressado
como um relâmpago verde -
pôs pensão familiar.
(Raramente é procurado.)
Ontem passei por aquela
velha rua condenada.
Sem querer me pus à escuta
A conversa das mangueiras
das conversas das mangueiras
sussurradas pelas copas
quando o vento as farfalhava:
- Ah! comadre tu te lembras
do molecório danado:
se um papagaio quedava,
nas folhas se encalhava,
os nossos galhos sofriam...
que os nossos galhos quebravam.
Ai que saudades que tenho
A mangueira casimiriana
do tempo em que não sofria
reumatismo nas raízes
e não tinha cicatrizes
pelo meu tronco enrugado...
Nunca mais nos voltarão
caroços de nossos frutos
contra as nossas copas fartas.
Nunca mais colhões-de-bode,
Colhões-de-bode
nunca mais as baladeiras
bole-bole e baladeiras
nos roubarão passarinhos
pousados nos nossos galhos;
nunca mais os bole-boles
arrancarão nossos frutos:
(eu me sinto tão pesada
que tanto é o número deles!)
Nunca mais a prefeitura
quis cortar as nossas tranças
- o cabelo a la garçone
que agora no modernismo
se chama de taradinho.
Ah! tempos que já se foram
e nunca mais voltarão,
nunca mais será lembrada
a rua da Conceição.
_ Eu vi um dia um cavalo, O cavalo e o espelho
disse outra velha mangueira,
renegado pelos donos
por ter quebrado uma perna
e não poder trabalhar,
entrar pela barbearia
empoeirada e deserta
que fica perto da esquina;
ao chegar frente ao espelho
de moldura descascada
(que há muito fora dourada)
vendo logo o seu reflexo
julgou que era uma potranca
- linda! - foi se aproximando
até juntarem os focinhos.
_Nunca pensei que as potrancas
tinham focinhos tão frios,
disse, um bufido soltando
(que ao cristal embaciou).
_ Nunca pensei que as potrancas
pudessem se evaporar...
... e logo reaparecer.
_ Ai, que aquilo era por certo
de meu pai a alma penada
(um garanhão militar
que morrera reformado
de tanto puxar canhão
no tempo em que não havia
batalhão motorizado).
- Cruz Credo! - um claro relincho,
que nervoso se esgalhou
pelo ar quieto da tarde
retiniu num par de coices
e o pobre espelho, coitado,
trêmulo se espatifou.
Ai, rua da Conceição,
pobres prédios cariados,
só a erva-de-passarinho A erva-de-passarinho
habita os vossos sobrados!
Ah! que essa estória me lembra
uma outra que vou contar,
é a história circulante
da cabrita Rolimar,
Romance da cabrita Rolimar
que estoicamente cumprindo
o dever com sua espécie
se arrebentou sem um grito,
no dia em que ela pariu
a primeira cria, o Brito.
Era a cabra Rolimar
a princesa desta rua.
Foi uma noite de lua,
(meio pensa em seu luar)
logo que seu último dono
desta rua se mudou,
que a cabrita Rolimar
veio conosco morar.
(Ah! comadre, eu bem que sei
que você se lembra dela)
Tinha um chifre reticente
e o outro como algarismo
(que a arquitetura das cabras
tem algo de equilibrismo),
as tetas jamais pejadas
nos seus pulos e trejeitos
balouçavam num apelo
(dizem que leite de cabra
é bom pra levantar peito).
Por entre as pedras a urtiga
já começava a morar,
mas logo ela aqui chegou
começou a retouçar.
E assim logo de começo
foi ficando confiada
e na antiga padaria
(roendo o balcão) fez morada.
Pois me disse um bem-te-vi
que ela era encantada:
em noite de lua cheia,
sexta-feira de quaresma
se punha de pé dançando
ao fazer o seu sabbat.
Mas não creio - só lembrando
sei quanto era preciosa:
pois tinha um olho malandro
e umas tetas cor-de-rosa.
Pois se até no descomer
era mui gentil de ver:
qual se fora semeando,
a modo de semeadeira
uns caroços de oliveira.
Mesmo quanto ao de comer
era de nada enjeitar:
eram papéis de jornal,
eram maços de cigarro
e até mesmo latas velhas
ela podia enrolar -
nada que visse na rua
era de ela rejeitar.
Um sanhaçu me contou
que ela era artista de circo:
dançava no picadeiro,
andava na corda bamba -
era estrela principal
do "Grande Circo Merino".
Mas cá ficou-se esquecida
(dizem que foi de paixão)
quando o circo foi embora.
No dia do nascimento
do cabrito (coitadinho!)
chovia de fazer lama.
A cabritinha sofria
sem gemer, sem se queixar.
Ai, comadre, se eu pudesse
adquirir movimento,
sair do leito de pedra
que me prendia as raízes,
só para correr pra longe
(pois não podia ajudar);
mas o que diria a gente
em vendo uma árvore andar?
O cabritinho nasceu
(um balido anunciou)
foi quando a pobre da cabra,
aos poucos, devagarinho,
parou de se estrebuchar.
Logo vieram os urubus
Os urubus
(como agentes funerários)
com seus fraques de lustrina,
com seus gestos bem medidos
e suas graves passadas
de acadêmico bom-tom
fizeram-lhe o necrológio
com tamanha hipocrisia
num arremedo de velório
(somente fazendo hora
té ver quando apodrecia).
Quando o chefe deu sinal,
aí foi um tal de avança
- tumulto de negras plumas!-
e em brevíssimos segundos
desmantelaram, lhe os ossos.
E quanto ao órfão Britinho
um preto velho o levou:
hoje mora noutra rua
berra e espirra o dia inteiro
usa um grande cavanhaque
e já é pai de chiqueiro.
- Eu tinha uma outra estória:
A vaca Cristina
era a da vaca Cristina.
Mas, já é estória demais!
Ai, rua da Conceição
somente retornarás
sob a forma de canção
repleta de nunca mais!
Ai! Somente os mamoeiros
Os mamoeiros e a lavadeira
pelos terrenos baldios
cujos mamões se parecem
com as mamas murchas caídas
da preta velha Quitéria,
lavadeira e cozinheira
mais antiga dessa rua.
Que inda exista quem se agache
nalgum aperto danado
detrás do que resta em pé
dos vossos muros rachados.
Nunca mais retornarei
a surpreender as conversas
de vossas velhas mangueiras
contando casos passados.
Adeus, minha velha rua,
OFERTÓRIO
adeus para nunca mais,
_ Ó rua da Conceição
que ficas perto dum cais.
(Mas será mesmo que existe
A saudade de pedra
essa rua na cidade?
ou é rua da concepção
no velho Cais da Saudade?)
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