ANIBAL BEÇA
(1946-2009)
Anibal Augusto Ferro de Madureira Beça Neto nasceu em Manaus em 13 de setembro de 1946. Poeta, compositor e jornalista faz parte da geração de poetas amazonenses denominada Pós-Madrugada, surgida no final da década de sessenta. Membro da UBE e envolvido também com teatro e artes plásticas, tem dado efetiva contribuição à divulgação da cultura amazônica. Membro da Academia Amazonense de Letras e Presidente do Conselho Municipal de Cultura de Manaus, de sua obra poética poderiam ser destacados os livros: Convite frugal (1966), Filhos da Várzea (1984), Dez haicais para os olhos da amada e outros poemas tocantes (1984), Itinerário Poético da noite desmedida à mínima fratura (1987), Suíte para os habitantes da noite (1994) - com o qual ganhou o Prêmio Nestlé de Literatura, na categoria Poesia - e Banda de asa (1998) . Site do poeta: http://portalamazonia.globo.com/anibal/
“(...) Não faço prefácio. /Faço esta serena invenção: / como de açucena o brilho /
contente perante a luz / da manhã que se levanta / e impregnando vai a vida / de sonora claridão. // Feliz dança, banda-de-asa / papagaio de famão, / assim te louvo cantando / Aníbal, meu claro irmão.” THIAGO DE MELLO
“A obra poética de Aníbal Beça está identificada com a vertente experimental da literatura brasileira. O autor concebe o fazer literário sob uma perspectiva formal, revelando permanente preocupação com os processos de elaboração de sua produção poética.” TENÓRIO TELLES
" É de coração aberto que lhe desejo a maior receptividade pública e compreensão para a bela poesia que está elaborando e que, espero, marcará seu nome como um dos que engrandeceram o cultivo artístico do verso."CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, Rio de Janeiro, 31 de julho de 1987.
“Anibal é o poeta moderno por excelência, a partir do momento em que elege a linguagem como referencial de seu fazer poético”. ZEMARIA PINTO
“Muito me encantou o seu barulho mudado em melodia. É como se eu sentisse nostalgia... Já estive em Belém do Pará, em 1950 (escrevi até uma Ode Equatorial) e senti a atração do Equador. Mas, em você, essa equatorialidade é uma explosão!" LÊDO IVO, Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1984.
Neste ano venturoso no qual se comemora o sexagésimo aniversário de nascimento do vasto poeta amazonense Anibal Beça, a quem tantos titãs da Musa já saudaram, resta-nos tentar compartilhar a encantação proporcionada pelo seu notório “cultivo artístico do verso”, como afetuosamente destacava Carlos Drummond de Andrade.
Aníbal, usando o “poder de ave” - do vôo - que a Arte poética às vezes concede aos oficiais do ofício, produz a comunicação inconsciente do estado d´alma em que se encontra, revelando uma rara beleza musical (mesmo cego de mim eu pude ver/e sentir no teu beijo a clara essência/que faz do nosso amor raro prazer) como nesta sonata para ir à lua.
Os artistas gregos obtiveram os seus assuntos da religião popular. Fídias recebeu o seu Deus de Homero, e os poetas trágicos não inventaram os conteúdos de suas obras. Assim também Aníbal, iluminado pela visão amazônica universal, múltiplo, cintilante, afetuoso, consegue transfigurar o poema numa espécie de magia mística semelhante ao estado de oração. Vida longa, saudável e feliz, de coração desejamos.
DONALDO MELLO, Brasília, março de.2006
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
BEÇA, Anibal. Filhos da várzea e outros poemas. 2ª. edição. Manaus, AM: Editora Valer, 2002. 160 p. 18,5X18,5 cm. Editor: Isaac Maciel. Capa e projeto gráfico Tenório Telles. Ilustração Van Pereira. Capa dura, sobrecapa. ISBN 85-7512-031-X Ex. bibl. part. Salomão Sousa
“ Dividido em três partes, “ Filhos da Várzea “, “ Hora nua ” e “ Poemas dedicados ”, tendo os “ 4 Cantares bacantes “ como intermezzo, o livro nos revela o que viria a ser uma das marcas registradas do poeta: o domínio das formas — do precioso haicai e rimas brancas, experiências aproximadas à vanguardas em voga, sem deixar de dar um piscadela marota com os sonetos construídos sobre a graça das redondilhas. Numa palavra, e sei que me repito, senhor de seu ofício: mestre.” ZEMARIA PINTO
“ Li Filhos da várzea, os poemas-pôster e os haicais afetuosamente a mim dedicados. Obrigado por tudo, meu caro poeta. É de coração aberto que lhe desejo a maior receptividade púbica e compreensão para a bela poesia que está elaborando e que, espero, marcará seu nome como um dos que engrandeceram o cultivo artístico do verso.” CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
CONTRA MÉTRICA
Não posso metrificar teus sentimentos,
há um tempo e um espaço para te amar?
Nestes quatorze degraus vou ao lugar
mesmo cansado do ar desses momentos
de subidas e descidas, ondas do mar,
(gangorra desenha fumaça em segmentos),
tuas mãos bailando aos quatro ventos
até teu coração, num frêmito, expulsar
a escrita do trigal e do teu nome, onde
deitamos e os lírios assomam teus cabelos,
amor, campina, tudo para e se esconde
e se repete amor, campina, brancos ventos,
eis a paisagem, amostra dos meus apelos
por não poder metrificar teus sentimentos!
De
FOLHAS DA SELVA
haicais
Manaus: Editora Valer, 2006
358 p.
ISBN 85-7512-227-4
“Anibal Beça se destaca pela sua prática do haicai. Sem dúvida, este registro fortuito de refinamento e contemplação poético o inscreve na mesma tradição que cultivaram, no século XX, Ezra Pound e os demais poetas imagistas norte-americanos, e no México, José Juan Tablada (...) “Os haicais de Beça, além de oferecer-nos a iluminação súbita (o estado satori próprio deste modo poético originário do Japão) nos enlaçam em um presente metafísico com outros seres do universo e consagram o humor do aqui e agora no contexto da natureza e dos referentes culturais da Amazônia e do Brasil”. Juan Carlos Galeano
De repente
caminham em fila na trilha —
formigas tucandeiras.
De manhã, a brisa
encrespa o igarapé
e penteia as águas.
Roupas estendidas —
o clarear dos relâmpagos
alveja o varal.
Ao passar a chuva
abre o sol timidamente
um claro sorriso.
Trinar de canário —
um canto de desencanto
de preso no aviário.
Sozinho na casa.
Lá fora o canto das cigarras —
ah, se não fossem elas...
DE
palavra parelha
Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2008
400p. ISBN 978-85-99209-32-5
“Não resta dúvida de que, em todas as épocas, o escritor, e sobretudo o poeta (artista por excelência do verbo), esteve voltado para os meios e recursos da enunciação, atento, pois, não só às idéias expressas, mas também aos elementos musicais e imagéticos que as acompanham.” Astrid Cabral
“Anibal Beça, poeta da Amazônia, sob quem nutre a raiz da fecundidade, capaz de trabalhar com habilidade na arte poética em todas as formas, desde o soneto ao haicai, tem vocação genesíaca”. Carlos Nejar
Espelho
Para fechar sem chave a minha sina
Clara inversão da jaula das palavras
As vestes da sintaxe que componho
De baixo para cima é que renovo.
Escancarando um solo transmutado
Para o sol da surpresa nas janelas
Ao mesmo pouso de ave renascida
Do fim regresso fera não domada.
Na duração que escorre nessa arena
Lambendo vem a pressa em que me aposto>
Nessa voragem, vaga um mar de calma
Que me alimenta os ossos da memória.
Sobrada sobra, cinza dos minutos,
O que sobrou de mim são essas sombras.
Parêmias
Colho do olhar a calma mansidão
presente, sempre armada na visão.
Vejo e muito olho o lombo nas retinas
de livros grossos lidos na surdina.
Eis que de estante fogem personagens
todos aqueles vistos na viagem
Na descoberta mágica do sonho
Acordado, nas lentes, um sardônico
ser, plasmado entre o medo e os meus pecados
de Sade a Nabukov degredado
lambendo em Chatterley godivas ladies
prendo lolitas dóceis nas paredes.
Madame Bovary o teu Flaubert sou seu!
Despindo as tuas vestes, teu plebeu.
Entre basílios e bentinhos sei-me Eça
Cruzado com Machado em dor expressa.
Na verdade nem Freud nem Masoch
Apenas um comum ser sem retoque.
(Suíte para os habitantes da noite) VI
EM TOM DE OLD-BLUES PARA PIANO, SAX,
CONTRABAIXO, GUITARRA E BATERIA
Quem saberia de mim
se me visse assim como estou
rendido ao aço das manhãs
pastoreando esse meu cão
por essas ruas tão tranqüilas
Que gemelar seria eu
linha paralela de vida
e tão parelha dessas ruas
fagulha dupla de mão única
bifurcada e sem retorno
nos afazeres do meu sonho
Em mim eu sou o que não fui
comigo fui o que não era:
derrotado nominado
o nominado vencedor
e resta só o testemunho
do cão que me acompanha agora
e dessas ruas que me sabem antes
(Suíte para os habitantes da noite) IX
CZARDAS PARA SERROTES COM ARCOS DE VIOLINO
E BERIMBAU DE LATA
Esta anábase é de hora aberta desnudada
tão desmedida como foi a minha vida
de nada me arrependo apenas me perdôo
porque meu vôo nem sequer se iniciou
E dessas nuvens que me espaçam esgarçadas
trapos e cordas dissonantes dessa lira
são acidentes de percurso em que recorro
como um Zenão o parafuso desse vôo
Assim nessa colméia em zíper me percorro
como um zangão no zigue-zague nos hexágonos
ando à procura de uma abelha desvairada
que me acompanhe na aventura pelos pântanos
exorcizando a desrazão desses escorços
essa não-ave desgarrada do meu nada
(Suíte para os habitantes da noite) XIII
ÁRIA PARA TENORINO E FLAUTIM
o gato aparece à noite
com seu esquivo silêncio
de passos bem calculados
num jogo de paciência
as garras bem recolhidas
na concha de suas patas
O gato passeia a noite
com seu manto de togado
como se fosse um juiz
de presas resignadas
a sua sentença de sombras
seu apetite de gula
O gato varre essa noite
facho de suas vassouras
vermelhas de olhos ariscos
E alcança nessa limpeza
movimento mais presto
o guincho mais desouvido
Mais que perfeito no bote
(tal qual Mistoffelees de Eliot)
do pulo que nunca ensina
tombam baratas besouros
peixes de aquário catitas
ao paladar sibarita
Nada à noite falta ao gato:
nem a presteza no salto
nem a elegância completa
do seu traje de veludo
para o baile dos telhados
roçando as fêmeas no cio
O gato é ato em seu salto
e a noite luz do seu palco
ribalta luciferina
lunária ária da lua
na réstia de seus dois gozos
é felix feliz felino
Guardei a sétima estrofe
para o canto do mistério
das sete vidas do gato
e seu tapete aziago
nas noites de sexta-feira
há provas de seu estrago
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(Suíte para os habitantes da noite) XXXII
SONATA PARA IR À LUA
Desnudo já me dou de mim doendo
na doação das folhas da floresta
que vão caindo sem saber-se sendo
pedaços de nós na noite deserta
A lua imponderável vai ardendo
cúmplice em nossa luz de fogo e festa
Meus braços são dois galhos te dizendo
que o forte às vezes treme em sua aresta
Esta outra face frágil de aparência
que só aos puros é dado conhecer
no abraço da paixão e sua ardência
Mesmo cego de mim eu pude ver
e sentir no teu beijo a clara essência
que faz do nosso amor raro prazer
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COPLAS DAS ÁGUAS (Itinerário poético da noite desmedida à mínima fratura)
Dessas águas beberei com a saliva
em barro salamargo - livre púcaro
que são as minhas mãos curvada concha
ó fruto sazonado - rio maduro.
No sol clave me faço sons do dia
ao encontro de peixes do silêncio
e me transporto à faina dessas águas
com tarrafas anzóis e camurins.
Meu alazão minha canoa afoita
relinchando na espora do meu remo
que sai corcoveando nos banzeiros
e vai no seu ofício cavalgar.
Eu quero a claridade das manhãs
mansa fala dos ventos sussurrando
cardumes de segredos piracemas
ó tempo de fartura que me salva.
Mas a messe que traz essa bonança
vem do fundo encantado dos peraus
e por vezes a ira desses deuses
aflora nas enchentes dessas águas.
Ó tempo rarefeito e de amargura
onde os lumes das velas se alevantam
carpindo desesperos de viúvas
nas palafitas de alagadas preces.
Eis o mistério verde via crucis
das dolorosas estações de lágrimas
que se mesclam às dores desse rio:
água de viver água de morrer.
O ciclo desse rio é como a vida
que tem no próprio fim o seu começo
e assim o vicejar desses morrentes
é verbo solidário de esperança.
E o meu arpão de novo é estilete
a rasgar as nervuras dessas ondas
lâminas brilhantes - escamas novas
esteira fluvial e flamejante.
E os meus olhos de velho pescador
são duas flechas claras e certeiras
celebrando o reencontro desses alvos
pois pronto estou inteiro para o dia.
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POEMETO DA PANDORGA (Filhos da várzea)
Para Luiz Bacellar
Curvado arco
o seio da linha
(mamilos ao vento)
cerol maroto bolina.
Arco retesado
curvo.
Turvo o ar da
curva do arco
(linha de tesão)
empinada
de famão.
O vidro brilha na cola branca.
A linha passeia a rabiola
da pandorga, banda de asa,
assanhada!
Poemas transcritos de BANDA DA ASA: poemas reunidos de Aníbal Beça. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.
BEÇA, Aníbal. Itinerário poético da noite desmedida à mínima fratura. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1987. 94 p. 10x20 cm. “Orelha” do livro por Astrid Cabral. Ilustrações: Van Pereira. “ Aníbal Beça “ Ex. na bibl. Antonio Miranda
COPLAS DA NOITE
Ah, pedaço de noite tão obscura
pervago teus mistérios como sombra
cúmplice de neons e mariposas
nestes bares de duras mutações.
Teu hálito de aniz carmim e náusea
luzeiro de amarguras dos perdidos
é decididamente a simetria
dos postes verticais de um Mondrian.
E esta lua urbaniza a desrazão
dos loucos prostitutas e poetas
insólito festim dessas tristezas
bêbadas melodias nas vitrolas,
E nesses rastos gris das avenidas
o choro dos pierrôs se perpetua
no sorriso de fúteis colombinas
comédia que é de arte e solidão.
Esta noite não é só dos desvalidos
é noite que é também de vencedores
cafetões proxenetas gigolôs
dialética de todos os crepúsculos.
Por quem será o sonho do notívago
suzanas julietas ou marílias?
Desamado dos bares visitante
por qual dos afazares te consomes?
Eu sou mais um amante inveterado
das noites e do azul das madrugadas
prossigo meu roteiro solitário
na vaga luz de prata vagalume.
Chuva fina que chove sobre mim
vem e esparge teu canto depressivo
vem e afasta de mim este meu cálice
que não é só de sangue mas torpor.
Ó anjos desta noite me socorram
com suas negras asas de nanquim
rasguem essas mortalhas dos agouros
e me salvem daquela que não tarda.
E os cantares dos galos de esperanças
rufam rubros tambores deste dia
e passam pelas fendas deste sol
prenúncio e fim da noite desmedida.
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