POESIA ALAGOANA
Coordenação de Cármen Lúcia Dantas
Fonte: www.soniavandijck.com
ARRIETE VILELA
Poeta e contista, nasceu em Marechal Deodoro, Alagoas, em 1949, é professora de Literatura da Universidade Federal de Alagoas. Já recebeu numerosos prêmios, tendo sido distinguida como mérito cultural da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro com a obra Lãs ao vento.
“Dona de uma obra que tematiza a Palavra e, em conseqüência, a escritura (suas possibilidades, conseqüências e responsabilidades), Arriete Vilela abre seu novo livro com João Cabral de Melo Neto: “Escrever é estar no extremo de si mesmo”, anunciando o que se vai experimentar até alcançar o ponto final indicado na epígrafe: a luta com, na e pela Palavra, para dar corpo a realidades, que, em última instância, são mesmo lãs ao vento: “Palavra: um modo metonímico de me fazer legar uma escritura de esfacelamentos, de recortes da realidade, de bordejos e de desesperanças.”, diz o texto, e dispensa explicações sobre esse “metonímico” que não pôde ser evitado.” Sônia van Dijck
Bibliografia: Eu, em versos e prosa (1970), 15 poemas de Arriete (1974), Recados (1978), Para além do avesso da corda (1980), Remate (1983), Farpa (1988), A rede do anjo (1992), Dos destroços, o resgate (1994), O ócio dos anjos ignorados (1995), Tardios afetos (1994), Vadios afetos (1999), Frêmito (2003), Lãs ao vento (2005).
De
Arriete Vilela
Obra poética reunida
Macéió: Poligraf, 2009. 532 p.
POEMA N. 4
Preciso sempre
ir dentro de mim:
confiro-me.
E quando emerjo,
sou rochedo descobrindo-se
com a baixa da
maré.
POEMA N. 11
Não quero mais
que o mergulho no mar,
a cara virada para o sol,
o esquecimento:
alma boiando à deriva,
como se fora tábua
despregada do casco
de algum velho barco.
POEMA N. 21
Hoje farejas indícios
de novas trilhas,
velas o teu coração tornado
ríspido, brumoso,
e vais às praças públicas colher
um súbito rosto.
Hoje tenho nos olhos
somente a dança das
estrelas cadentes
fazendo-se mar e poesia:
a minha melhor
porção diária de vida.
Poema 14
A Palavra
cria, subverte e celebra
seus simbolismos
suas metáforas
seus confrontos
fracassos
fronteiras
pelo gosto de transgredir-se
de denunciar-se
— ora por ser delito
na tradição
— ora por ser delírio
no esplendor.
Poema 25
Como um sutil traço
na retina dos olhos de rotina,
a Ilusão é invisível desvario
duelo silencioso
insana persistência diária:
fio de pólvora seca
no rastro
do improvável.
POEMA N. 26
Da janela sobre o mar,
sem saudades eu dou adeus
a mim mesma;
faço-me outra,
e nova.
Quero trazer-me alegre
à luz do dia ou da noite,
sossegar-me nas trovoadas,
evitar as esporas do vento
nos meus cabelos.
Inútil esforço,
Sei. Aos meus olhos
cola-se, diariamente,
uma alma de estopa áspera,
embora rara.
POEMA N. 28
Os meninos de rua
Parecem pardais urbanos:
em ligeiros vôos
acham-se em toda parte,
aproveitam restos de toda sorte.
Tropical
é algazarra de suas vozes,
quando se ajuntam;
seus gestos e jeitos,
de uma graça desavisada,
assustam e comovem.
Atentíssimo dever ser
o anjo da guarda dos meninos de rua,
esses tantos pardais urbanos.
POEMA N. 29
Vou me sabendo sem remansos.
Por vezes o mar estronda
dentro de mim
e tempestades medonhas me obrigam
a descer aos porões, a reconhecer-me
nas escotilhas fechadas da minha
incômoda solidão.
Difícil reconhecimento, porém.
Eu já sou muitas.
Meus olhos, é verdade,
ainda se mantêm amorosamente
indiscretos, e minha alma busca
da palavra as seduções segredosas
que me ardem no peito.
Mas já não me deixo
Possuir.
VEJA o E-Book: Poema 13, de ARRIETE VILELA:
https://issuu.com/antoniomiranda/docs/arriete_vilela
POESIA SEMPRE - Número 33 – Ano 17 / 2010. Hungria e Índice Geral.
Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2010. 320 p; 17,5 x 25,5 cm.
Editor: Marco Lucchesi. ISSN 9770104062006 Ex. bibl. Antonio Miranda.
Poema 4
A Palavra:
não um anzol
jogado à água
clara,
mas o anzol fisgador
nu,
em funduras da terra
sem água.
Poema 22
Geleia de maçãs ácidas
não encobre as nódoas do poema
que se concebeu, desde o primeiro verso,
sem amor:
apenas palavras em rigor de serem testemunhais.
duras e certeiras como uma navalha
no desafio aos punhos da imediata hostilidade.
Geleia de maçãs ácidas
não adoça o concreto em torno do poema.
escrito no furor das madrugadas
sem amor:
apenas se interpõe nas excessivas metáforas
lancinantes,
em desespero de serem vazias e inúteis.
Geleia de maçãs ácidas
somente acentua a incompreensível
e antiga
delicadeza do poema asfixiado por amor.
Poema 24
O grande canto está ainda
por fazer-se - mas ele será teu,
pois me tens dado as permanentes flores
de papel crepom que me enfeitam vestido e cabelo,
enquanto danças ao redor de lembranças
degradadas.
O grande canto está ainda
por fazer-se — mas ele será teu,
pois vens da linhagem dos amores intensos
- abomináveis no declínio, embora -
e tens, tatuadas nos teus olhos de mar ao crepúsculo,
as grandes asas com que sonhou a pequena borboleta
amarela, nos avessos de uma fantasia
sem telhados.
O grande canto está ainda
por fazer-se - e ele será teu,
impiedosamente.
Página ampliada e republicada em julho de 2019
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