Nasceu em Inhambane, Moçambique. Poeta.  Jornalista. Sua estréia deu-se com o livro O País dos Outros (1959). . Lançou, com  João Pedro Grabato Dias, os cadernos de poesia Caliban (1971-72),  Trabalhou como adido de imprensa, na  delegação portuguesa à Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque (1974)  onde participa dos trabalhos da Comissão de Descolonização. Publicou Memória Consentida (1982) e em 1984  recebeu o prêmio de poesia do PEN Clube. 
                    
                       
                          NATURALIDADE 
                      Europeu, me dizem.
                      Eivam-me de literatura e doutrina
                      européias
                      e europeu me chamam.
                      Não sei se o que escrevo tem raiz de algum
                      pensamento europeu.
                      E provável... Não. E certo,
                      mas africano sou.
                      Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
                      desta luz e deste quebranto.
                      Trago no sangue uma amplidão
                      de coordenadas geográficas e mar Indico.
                      Rosas não me dizem nada,
                                            caso-me mais à agrura das micaias
                      e ao silêncio longo e roxo das tardes
                      com gritos de aves estranhas.
                      Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
                      Mas dentro de mim há savanas de aridez
                      e planuras sem fim
                      com longos rios langues e sinuosos,
                      uma fita de fumo vertical,
                      um negro e uma viola estalando.
                       
 
                       
                      Princípio do dia 
                       
                      Rompe-me  o sono um latir de cães
                      na  madrugada. Acordo na antemanhã
                      de gritos  desconexos e sacudo
                      de mim os  restos da noite
                      e a cinza  dos cigarros fumados
                      na  véspera.
                      Digo  adeus à noite sem saudade,
                      digo  bom-dia ao novo dia.
                      Na mesa o  retrato ganha contorno,
                      digo-lhe  bom-dia
                      e sei que  intimamente ele responde.
                       
                      Saio para  a rua
                      e vou  dizendo bom-dia em surdina
                      às coisas  e pessoas por que passo.
                       
                      No  escritório digo bom-dia.
                      Dizem-me  bom-dia como quem fecha
                      uma janela  sobre o nevoeiro,
                      palavras  ditas com a epiderme,
                      som  dissonante, opaco, pesado muro
                      entre o  sentir e o falar.
                       
                      E bom dia  já não é mais a ponte
                      que eu  experimentei levantar.
                      Calado,
                      sento-me  à secretária, soturno, desencantado.
                       
                      (Amanhã  volto a experimentar).
                       
                       
                       
                      Velho Colono
                       
                      Sentado no banco cinzento
                        entre as alamedas sombreadas do parque.
                        Ali sentado só, àquela hora da tardinha,
                        ele e o tempo. O passado certamente,
                        que o futuro causa arrepios de inquietação. 
                        Pois se tem o ar de ser já tão curto,
                        o futuro. Sós, ele e o passado,
                        os dois ali sentados no banco de cimento.
                      
                        Há pássaros chilreando no arvoredo,
                        certamente. E, nas sombras mais densas
                        e frescas, namorados que se beijam
                        e se acariciam febrilmente. E crianças
                        rolando na relva e rindo tontamente.
                      
                        Em redor há todo o mundo e a vida.
                        Ali está ele, ele e o passado,
                        sentados os dois no banco de frio cimento.
                        Ele a sombra e a névoa do olhar.
                        Ele, a bronquite e o latejar cansado
                        das artérias. Em volta os beijos húmidos,
                        as frescas gargalhadas, tintas de Outono
                        próximo na folhagem e o tempo.
                      
                        O tempo que cada qual, a seu modo,
                        vai aproveitando.
                                          
                       
                      Testamento
                       
                      Se por  acaso morrer durante o sono
                      não quero  que te preocupes inutilmente.
                      Será  apenas uma noite sucedendo-se
                      a outra  noite interminavelmente.
                       
                      Se a doença  me tolher na cama
                      e a morte  aí me for buscar,
                      beija  Amor, com a força de quem ama,
                      estes  olhos cansados, no último instante.
                       
                      Se, pela  triste monotonia do entardecer,
                      me  encontrarem estendido e morto,
                      quero que  me venhas ver
                      e tocar o  frio e sangue do corpo.
                       
                      Se, pelo  contrário, morrer na guerra
                      e ficar  perdido no gelo de qualquer Coreia,
                      quero que  saibas, Amor, quero que saibas,
                      pelo  cérebro rebentado, pela seca veia,
                       
                      pela  pólvora e pelas balas entranhadas
                      na dura  carne gelada,
                      que morri  sim, que não me repito,
                      mas que  ecoo inteiro na força do meu grito.
                        
                      
                       
                      Ilha dourada
                       
                      A  fortaleza mergulha no mar
                      os  cansados flancos
                      e sonha  com impossíveis
                      naves  moiras
                      Tudo mais  são ruas prisioneiras
                      e casas  velhas a mirar o tédio
                      As gentes  calam na
                      voz
                      uma  vontade antiga de lágrimas
                      e um  riquexó de sono
                      desce a  Travessa da "Amizade"
                      Em pleno  dia claro
                      vejo-te  adormecer na distância,
                      Ilha de  Moçambique,
                      e faço-te  estes versos
                      de sal e  esquecimento
                       
                       
                      De "A Ilha de Próspero" 
                       
                                           UNIFORME DE POETA
                       
                                        Ajustei minha cabeleira longa,
                               coloquei-lhe ao de  cima meu
                      
                        chapéu de coco em fibra sintética,
                        sacudi a densa poeira das asas  encardidas
                        e, dependurada a lira a tiracolo,
                        saio para a rua
                        em grande uniforme de poeta.
                        Tremei guardas-marinhas,
                        alferes do activo em
                        situação de disponibilidade:
                        meu ridículo hoje suplanta
                        o vosso e nele se enleia e perturba
                        o suspiro longo das meninas
                        romântico-calculistas.
                         
                         
                        MAXILAR TRISTE
                         
                        Suave curva dolorosa
                        atenuando o bordo rijo
                        desse rosto derradeiro
                        de brancura infinita.
                         
                        Impugnando-lhe a doçura, 
                        a antinomia do tempo
                        acentuará os duros ângulos 
                        num mapa de tristeza
                         
                        irreparável. O sorriso
                        vago nela projecta um
                        brilho fosco de loiça antiga:
                         
                        espreitando na carne
                        os dentes anunciam o resto.
                         
                         
                        
                        De
                          Rui Knopfli
  ANTOLOGIA POÉTICA
                          Org. Eugenio Lisboa
                          Belo Horizonte: Editora ufmg, 2010. 
                          198208  p.  (Poetas de Moçambique)  
                          ISBN  978-85-7041-715-2
                         
                        Não é fácil encontrar  poetas africanos nas livrarias do Brasil. Uma que outra antologia, alguns  títulos publicados pela editora paulista Iluminuras (graças ao empenho de  Floriano Martins). Agora, em boa hora, a Editora ufmg lançou dois títulos de  uma série intitulada POESIA DE MOÇAMBIQUE       que supomos vai ter continuidade... Os célebres José Craveirinha, um dos heróis  da luta pela independência do país e o não   menos notável Rui Knopfli foram os escolhidos e organizados,  respectivamente, por Ana Mafalda Leite e Eugênio Lisboa. Edições bem cuidadas,  bonitas (capas de papel craft) e a um preço não tão acessível, mas compatível  com os novos preços do mercado (que subiu bastante ultimamente...).
                        Escolhemos um metapoema  para acompanhar este registro, recomendando a obra aos nossos internautas pois  são autores fundamentais na poesia moçambicana e africana lusófona.
                        
                         
                        IDEIA DO POEMA
                          
                          Fluyída, indecisa, volátil,
                          inconcreta, a ideia não
                          se submete facilmente
                          ao cerco insidioso
                          da palavra.
  
           Elusiva
                          e ambígua a cada
                          instância se lhe furta,
                          presa de um discreto pudor.
                          A palavra é, porém,
  
                          audaciosa, pertinaz, envolvente.
                          Persegue-a e espreita-a,
                          faz-lhe longas esperas
                          e sai-lhe ao caminho
                          a horas inesperadas, em lugares
  
                          incertos.
           Cativa-a
                          e perturba-a lentamente,
                          subverte-lhe a vontade,
                          exalta-lhe os sentidos
  
                          e, amorosamente,
                          nela penetra, desfigurando-a.
  
                          Da ideia já nada,
                          ou quase, sobra.
                          Senão o poema.
 
                         
                         
                       
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                      TEXTOS EN  ESPAÑOL
                      Traducción de XOSÉ LOIS GARCÍA
                       
                       
                      UNIFORME DE POETA
                       
                      Arreglé mi larga cabellera,
                      le coloque por encima mi
                      sombrero de coco de fibra sintética,
                      sacudi el denso polvo de la alas súcias
                      y, colgada la tira al hombro
                      salgo a la calle
                      con el gran uniforme de poeta.
                      Temblad guardamarinas,
                      alféreles en activo en
                      situación de disponibles:
                      mi ridículo hoy suplanta
                      al vuestro y en él se enreda y perturba
                      el largo suspiro de las señoritas
                      romântico-calculistas.
                       
                       
                      TRISTE MANDÍBULA
                       
                      Suave curva dolorosa
                      atenuando el bordo duro
                      de ese rostro anterior
                      de blancura infinita.
                       
                      Impugnándole la dulzura,
                      la antinomia del tiempo
                      acentuará los duros ângulos
                      en un mapa de tristeza
                       
                      irreparable.  La sonrisa
                      vaga proyecta en ella um
                      brillo oscuro de loza antigua:
                       
                      vigilando en la carne
                      los dientes anuncian el resto.
                       
                       
                      Poemas publicados  originalmente en la revista HORA DE POESIA, n. 19-20, Barcelona, sin fecha.  Ejemplar cedido para la Biblioteca Nacional de Brasilia por Aricy Cuvello, y la  reproducción con la debida anuência del traductor.
                       
                      Página publicada em  março de 2008, ampliada e republicada em maio de 2011           Poesia  moçambicana