POESIA MOÇAMBICANA 
                
                  Seleção de Nelson Rossano 
                 
                 
                 
                
  
                
                NOÉMIA DE SOUSA   
                Nasceu em Catembe,  Moçambique, em 1926 e faleceu em Cascais, Portugal, em 2002. Poeta, jornalista  de agências de notícias internacionais viajou por toda a África durante as  lutas pela independência de vários países. Só publicou tardiamente seu livro de  poesias Sangue Negro, em 2001. 
                  
                TEXTOS EM PORTUGUÊS /  TEXTO EN ESPAÑOL 
                
                  A MINHA DOR 
                     
                   
                  Dói 
                    a mesmíssima angústia 
                    nas almas dos nossos corpos 
                    perto e à distância. 
   
                    E o preto que gritou 
  é a dor que se não vendeu 
                    nem na hora do sol perdido 
                    nos muros da cadeia.  
   
   
  AFORISMO 
   
                    Havia uma formiga 
                    compartilhando comigo o isolamento 
                    e comendo juntos. 
   
                    Estávamos iguais  
                    com duas diferenças: 
   
                    Não  era interrogada 
                    e por descuido podiam pisá-la. 
   
                    Mas aos dois intencionalmente 
                    podiam pôr-nos de rastos 
                    mas não podiam 
                    ajoelhar-nos. 
   
   
  GRÃO D´AREIA 
   
                    Um só ínfimo grão de´areia 
                    nunca imaginei 
                    pesar tanto... 
   
                    -------------- 
   
                    eu depondo  
                    no clássico ritual 
                    sobre o nosso adeus 
                    constrangidos torrões 
  à mancheias. 
   
   
  EM VEZ DE LÁGRIMAS 
   
                    Só um choro em seco 
                    põe no vértice da minha dor 
                    o mais intenso 
                    auge do luto. 
   
   
  INFELIZMENTE  JAMAIS 
   
                    No instintivo temor das ruas 
                    Maria hesitava nos passeios 
                    até não pressentir 
                    o mais fugaz 
                    presságio. 
   
                    Contorno de sombra 
  à berma de uma além –asfalto 
                    fatal presságio da rua 
                    infelizmente já não 
                    a intimida. 
   
                    Cumprido o funesto prenúncio 
                    já atravessava uma avenida 
                    infortunadamente já nenhum risco 
                    intimida o espírito 
                    de Maria. 
   
                    Doentiamente eu amaria ver 
                    Maria ainda amedrontada 
                    e nunca como depois 
                    em que já nada a intimida. 
   
   
  SACRÁRIO 
   
                    Ausência do corpo. 
                    Amor absoluto. 
   
                    Hosanas de Sol. 
                    De chuva. 
                    De areia. 
                    E andorinhas 
                    resvalando as asas 
                    no consternado ombro cinzento 
                    de uma nuvem. 
   
                    E uma hérbia mantilha 
                    teu sacrário  
                    velando. 
   
   
  TE DEUM 
   
   Opressiva 
                    a inquietude 
                    no carrilar dos bronzes. 
   
                    Libreto 
                    de mil cactos 
                    em mudo refrão dos desertos. 
   
                    Dobre 
                    de sinos 
                    em solene Te Deum 
                    de graças pela Maria. 
   
   
  TEIAS DA  MEMÓRIA 
   
                    Na baça melancolia do tecto 
                    bilros de teia bordam solidão 
                    enquanto meigos sussurros de sombra 
                    no brilhante mutismo do espelho 
                    recitam estrofes de poeira.  
                    
                  Magaíça  
                  A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda 
                  engoliu o mamparra, 
                  entontecido todo pela algazarra 
                  incompreensível dos brancos da estação 
                  e pelo resfolegar trepidante dos comboios 
                  Tragou seus olhos redondos de pasmo, 
                  seu coração apertado na angústia do desconhecido, 
                  sua trouxa de farrapos 
                  carregando a ânsia enorme, tecida 
                  de sonhos insatisfeitos do mamparra. 
                    
                  E um dia, 
                  o comboio voltou, arfando, arfando... 
                  oh nhanisse, voltou. 
                  e com ele, magaíça, 
                  de sobretudo, cachecol e meia listrada 
                  e um ser deslocado 
                  embrulhado em ridículo. 
                    
                  Ás costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça? 
                  trazes as malas cheias do falso brilho 
                  do resto da falsa civilização do compound do Rand. 
                  E na mão, 
                  magaíça atordoado acendeu o candeeiro, 
                  á cata das ilusões perdidas, 
                  da mocidade e da saúde que ficaram soterradas 
                  lá nas minas do Jone... 
                    
                  A mocidade e a saúde, 
                  as ilusões perdidas 
                  que brilharão como astros no decote de qualquer lady 
                  nas noites deslumbrantes de qualquer City. 
                    
                    
                  Nossa irmã lua  
                    
                  Uma irmãzinha meiga que nos cubra 
                  a todos com a quentura terna e gostosa 
                  do seu carinho... 
                  que entorne toda a sua claridade 
                  sobre as nossas tristes cabeças vergadas 
                  e, como um feitiço forte e misterioso, 
                  nos afugente as raivas fundas e dolorosas 
                  de revoltados, 
                  com a sua morna carícia de veludo... 
                  sua enorme mão, 
                  luminosamente branca, consegue-nos tudo. 
                  E sob o seu feitiço potente, serenamos. 
                  E pouco a pouco, momento a momento, 
                  Sossegando vamos... 
                  Fechando nossos olhos pacientes de esperar, 
                  Já podemos vogar no mar 
                  Parado dos nossos sonhos cansados... 
                  E até podemos cantar! 
                  Até podemos cantar o nosso lamento... 
                  De olhos para dentro, para dentro de nós, 
                  Sentimo-nos novamente humanos, 
                  Somos nós novamente, 
                  E não brutos e cegos animais aguilhoados... 
                  Sim. Nós cantamos amorosamente  
                  A lua amiga que é nossa irmã. 
                  – Embora nos repitam que não, 
                  nós o sentimos fundo no coração... 
                  (que bem vemos 
                  que no seu largo rosto de leite há sorrisos brandos de  doçura 
                  para nós, seus irmãos...) 
                  só não compreendemos  
                  como é que, sendo tão branca a nossa irmã, 
                  nos possa ser tão completamente crista, 
                  se nós somos tão negros, tão negros, 
                  como a noite mais solitária e mais desoladamente escura... 
                    
                  Se me quiseres conhecer 
                  Se me quiseres conhecer, 
                  Estuda com olhos de bem ver 
                  Esse pedaço de pau preto  
                  Que um desconhecido irmão maconde 
                  De mãos inspiradas 
                  Talhou e trabalhou em terras distantes lá do norte. 
                  Ah! Essa sou eu: 
                  órbitas vazias no desespero de possuir a vida 
                  boca rasgada em ferida de angustia, 
                  mãos enorme, espalmadas, 
                  erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça, 
                  corpo tatuado feridas visíveis e invisíveis 
                  pelos duros chicotes da escravatura... 
                  torturada e magnífica 
                  altiva e mística, 
                  africa da cabeça aos pés, 
                  – Ah, essa sou eu! 
                  Se quiseres compreender-me 
                  Vem debruçar-te sobre a minha alma de africa, 
                  Nos gemidos dos negros no cais 
                  Nos batuques frenéticos do muchopes 
                  Na rebeldia dos machanganas 
                  Na estranha melodia se evolando 
                  Duma canção nativa noite dentro 
                  E nada mais me perguntes, 
                  Se é que me queres conhecer... 
                  Que não sou mais que um búzio de carne 
                  Onde a revolta de africa congelou 
                  Seu grito inchado de esperança. 
                    
                 
                  
                In notícias, 07.03.1958, página “Moçambique 58”  
                  
                   
                SE ME  QUISERES CONHECER 
  
                Se me quiseres conhecer, 
                estuda com olhos de bem ver 
                esse pedaço de pau preto 
                que um desconhecido irmão maconde* 
                de mãos inspiradas 
                talhou e trabalhou 
                em terras distantes lá do Norte. 
                 
                Ah, essa sou eu: 
                órbitas vazias no desespero de possuir  a vida. 
                boca rasgada em feridas de angústia, 
                mãos enormes espalmadas, 
                erguendo-se em jeito de quem implora e  ameaça, 
                corpo tatuado de feridas visíveis e  invisíveis 
                pelos chicotes da escravatura... 
                Torturada e magnífica. 
                Altiva e mística. 
                Africa da cabeça aos pés 
                — Ah, essa sou eu! 
                  
                Se quiseres compreender-me 
                vem debruçar-te sobre minha alma de  Africa, 
                nos gemidos dos negros no cais 
                nos batuques frenéticos dos muchopes 
                na rebeldia dos machanganas 
                na estranha melancolia se evolando... 
                duma canção nativa, noite dentro... 
                  
                E nada mais me perguntes, 
                se é que me queres conhecer... 
                Que eu não sou mais que um búzio de  carne 
                onde a revolta de África congelou 
                seu grito inchado de esperança. 
                  
                *   Maconde — uma  das etnias de Moçambique. 
  
                
                  
                  
                TEXTO EN ESPAÑOL 
                  
                
                  RUEGO 
                    
                  ?Quién estrangulo la voz cansada 
                  de mi hermana de la selva? 
                    
                  De pronto su llamado a la acción 
                  se perdió en el fluir infinito de la noche y el día. 
                  Ya no llega hasta mi cada mañana, 
                  exhausta tras el largo viaje, 
                  ahogada milla tras milla 
                  en el eterno grito: ¡Macala! 
                    
                  No, ya no viene más, húmeda todavía de rocío, 
                  maniatada con niños y con sumisión… 
                  Un hijo a la espalda, otro en el vientre 
                  ¡siempre, siempre, siempre! 
                  Y un rostro todo contenido en una mirada suave, 
                  dada vez que recuerdo esa mirada 
                  siento que mi carne y mi sangre se hinchan trémulas, 
                  latiendo ante afinidades y revelaciones… 
                  Pero ¿quién ha impedido que su inconmensurable mirada 
                  nutriera mi hambre profunda de camaradería 
                  que nunca podrá satisfacer mi pobre mesa? 
                    
                  “Io mame” ¿quién pudo silenciar de un tiro 
                  la noble voz de mi hermana de la selva? 
                  ¿Qué mezquino y brutal látigo de rinoceronte 
                  la azotó hasta matarla? 
                    
                  —En mi jardin florece la siringa. 
                  Pero con un presagio maligno en su flor purpúrea, 
                  en su intenso inhumano perfume; 
                  y el verano aguarda que el hijo de mi hermana 
                  descanse en él… 
                  En vano, en vano, 
                  Un chirico canta y canta posado entre los juncos, 
                  por el niñito de mi hermana perdida, 
                  víctima de los nebulosos amaneceres de la selva. 
                  Ay, yo sé, yo sé: al final había un resplandor 
                  de despedida en esos dulces ojos, 
                  y su voz llegó como un murmullo ronco, 
                  trágico y desesperado…. 
                    
                  Oh África, patria mía, respóndeme: 
                  ¿Qué le hicieron a mi hermana de la selva, 
                  Que ya no viene más a la ciudad con sus eternos  retoños 
                  (uno a la espalda, otro en el vientre) 
                  y su eterno pregón de carbonera? 
                  ¡Oh África, patria mía, 
                  tú al menos no renegarás de mi heroica hermana, 
                  ella vivirá en el altivo memorial de tus brazos! 
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