JOSÉ CRAVEIRINHA
(1922-2003)
Nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo, Moçambique).
Autodidata, desempenhou diversas actividades tais como funcionário da Imprensa Nacional de Lourenço Marques, jornalista, futebolista, tendo também colaborado em diversas publicações periódicas, nomeadamente O Brado Africano, Itinerário, Notícias, Mensagem, Notícias do Bloqueio e Caliban.
Foi preso pela PIDE, mantendo-se na prisão durante 5 anos. Posteriormente após a independência de Moçambique foi membro da Frelimo e presidiu à Associação Africana.
Recebeu o Prêmio Alexandre Dáskalos, o Prêmio Nacional, em Itália, o Prêmio Lótus, da Associação Afro-Asiática de Escritores e o Prêmio Camões, em 1991. É um dos mais reconhecidos poetas da língua portuguesa e um dos maiores escritores africanos.
Obra: Xibugo, 1964; Cântico a um Dio de Catrane, 1966; Karingana Ua Karingana, 1974;
Cela 1, 1980 e Maria, 1988
Veja outros poemas do autor em: http://geocities.yahoo.com.br
Veja também o poema “Maria & José”, de Antonio Miranda, em homenagem ao poeta José Craveirinha: http://www.antoniomiranda.com.br
UM HOMEM NUNCA CHORA
Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.
Eu julgava-me um homem.
Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.
Agora tremo.
E agora choro.
Como um homem treme.
Como chora um homem!
POETA ATIRADO AOS BICHOS
Meu amor:
Nem tu percebes ainda o bater
ansioso dos tendões nos afinados
motores bem mainatos passando a ferro
o capim debaixo das obscenas chapas
na maquilhagem embelezando
a escarlate as picadas.
E
tua ostra de chamas
cerra-me no seu íman de con-
chá palpitando as mornas pétalas do teu gerânio
um belo coiso de gemidos no tálamo
de capim onde alongamos os nossos
pesadelos em fragmentos
dispersos na mata à ferroada
dos insectos de obuses.
Porque
confesso-te, meu amor
não são bem propriamente o que eu desejo
estes pervertidos versos sem rima e sem nada
mas unicamente nacos fixes de um poeta
de carne em sangue no meio deste zôo
atirado aos bichos!
SEM TÍTULO
Não sei se existe Deus.
Mas se Deus existe
Ele está com toda a certeza
a comer comigo esta farinha
no mesmo prato.
(1966)
APARÊNCIAS
Amigos!
Apesar das aparências
estarem de acordo com as circunstâncias
não sou eu quem morre de medo.
Antes
Durante
E após os interrogatórios
(Inclusive nos quotidianos trajectos de jipe)
a minha língua é que se torna de papel almaço
E minhas desavergonhadas rótulas de borracha
Coitadas é que tremem.
Ao bom evangelho dos cassetetes
ouvir avoengos pássaros bantos
cantarem algures nos ombros
velhas melodias de feridas.
E depois
à sedutora persuasão das ameaças
pela décima segunda vez humildemente
pensar: Não sou luso-ultramarino
SOU MOÇAMBICANO!
Será suficiente esta confissão
Sr. Chefe dos cassetetes
da 2ª. Brigada?
PARA UM IDÍLIO CLANDESTINO
Deixa-me que te beije
ao de leve o rosto na manhã nova
e meus dedos acariciem
nervosos a curva meiga do teu seio.
Meu amor:
o senso fragmenta-me a sensibilidade
e o que seu sinto-o
larva plena do que há-de vir.
Tu e eu
envolvidos nesta aventura
esperamos o comprometido instante
nalguma parte de nós.
Vai. Não te esqueças.
Nesta manhã do Infulene
ao quilômetro dez da liberdade
o sobrenatural acontece:
É assim.
Eu preso.
E tu minha mulher
depois da visita partes à vontade
mas não livre.
(Julho de 1967)
KARINGANA UA KARINGANA*
Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
— Karingana ua Karingana —
é que faz o poeta sentir-se
gente.
E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
nem em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que vai ser.
— Karingana!
*Obs. Fórmula clássica de iniciar um conto e que possui o mesmo significado de “Era uma vez”.
CANÇÃO NEGREIRA
Amo-te
com as raízes de uma canção negreira
na madrugada dos meus olhos pardos.
E derrotas de fome
nas minhas mãos de bronze
florescem languidamente na velha
e nervosa cadência marinheira
do cais donde os meus avós negros
embarcaram para hemisférios da escravidão.
Mas se as madrugadas
das minhas órbitas violentadas
despertam as raízes do tempo antigo ...
mulher de olhos fadados de amor verde-claro
ventre sedoso de veludo
lábios de mampsincha madura
e soluções de espasmo latejando no quarto
enche de beijos as sirenas do meu sangue
que meninos das mesmas raízes
e das mesmas dolorosas madrugadas
esperam a sua vez.
* fruto comestível de planta rasteira.
EM VEZ DE LÁGRIMAS
Só um choro em seco
põe no vértice da minha dor
o mais intenso
auge do luto.
DE PROFUNDIS
Extenso dia taciturno de nuvens.
Nas ramadas passarinhos de mágoa
lacrimejando chilros. Um braçado
polícromo de flores
perfumando
De profundis
de coroas.
Tão duro
assim lacônico
nossos adeus de rosas, Maria.
MÁQUINA ELÉCTRICA DE COSTURA
Quando finalmente Maria
menos havia de cansar-se a coser
sua nova máquina eléctrica de costura
em funesto ilogismo encerrada
noutro esmero de alinhaves
solidária se prosternou
desusada.
Infeliz
máquina de costura.
Extraídos de: CRAVEIRINHA, José. Obra Poética. Maputo: Direcção de Cultura, Universidade Eduardo Mondlane, 2002. 367 p.
NÃO SEI SE É UMA MEDALHA
Alguma vez
um cigarro aceso sentirá o delicioso sabor de te fumar de repente o ombro direito?
Pois
sobre isso eu juro
que tudo é pura mentira.
Juro
que nunca um cigarro LM
apagou sua idiossincrásica boca de lume
no calor escuro da minha omoplata.
E também juro
que nunca plagiei um cinzeiro moçambicano sentado a cheirar o bafo da própria cinza com o subchefe de brigada Acácio um Deus fantasmagórico envolto na especial nuvem de tabaco mistura de Virgínia com pele.
E também confesso
que se esta invenção tivesse acontecido muito provavelmente seria em mil novecentos e sessenta e seis à tarde numa certa Vila Algarve enquanto pela duodécima vez eu abanava a cabeça e dizia: - Não sei!
Por acaso
a mancha desta mentira está. Não sei se é uma medalha. Mas não sai mais.
De
José Craveirinha
ANTOLOGIA POÉTICA
Org. Ana Mafalda Leite
Belo Horizonte: Editora ufmg, 2010.
198 p. (Poetas de Moçambique)
ISBN 978-85-7043-849-4
Não é fácil encontrar poetas africanos nas livrarias do Brasil. Uma que outra antologia, alguns títulos publicados pela editora paulista Iluminuras (graças ao empenho de Floriano Martins). Agora, em boa hora, a Editora ufmg lançou dois títulos de uma série intitulada POESIA DE MOÇAMBIQUE que supomos vai ter continuidade... Os célebres José Craveirinha, um dos heróis da luta pela independência do país e o não menos notável Rui Knopfli foram os escolhidos e organizados, respectivamente, por Ana Mafalda Leite e Eugênio Lisboa. Edições bem cuidadas, bonitas (capas de papel craft) e a um preço não tão acessível, mas compatível com os novos preços do mercado (que subiu bastante ultimamente...).
Escolhemos um poema para acompanhar este registro, recomendando a obra aos nossos internautas pois são autores fundamentais na poesia moçambicana e africana lusófona.
REMENDOS DE ESTRELAS
Remendos de estrelas
passajadas no espaço
reconstroem todo o céu.
Mãe:
E se não houvesse estrelas
se o teu ventre me não gerasse
e se o céu em vez de infinito
fosse de pergamóide azul?
Que espécie de poesia, mãe
faria um poeta que não renuncia
exatamente como eu
à cor com que nasceu?
MARIA & JOSÉ
Poema de Antonio Miranda em homenagem a José Craveirinha
Imóvel, insone
no catre ermo
olhando para o alto
— uma estrela impávida
fitando-o em indevassável
solidão.
Na parede tépida
e desbotada
a foto da mulher
amada
— olhar de viúvo,
no desconsolo
inveterado.
Dores do abandono
mais cruel e solerte
— por não mais tê-la
por havê-la desejado
tanto! nos anos de cárcere
e, já livre, por não tê-la.
1. O poeta José Craveirinha esteve anos sofrendo humilhações
e torturas durante as lutas pela Independência de Moçambique.
Já em liberdade, dedicou os últimos anos de sua vida à escritura
de poemas de inconsolável tristeza pela morte de sua amada.
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