EDUARDO WHITE
Nasceu em Quelimane em 1963. Foi membro da Associação dos Escritores Moçambicanos - AEMO. Perdeu a vida em 24 de Agosto de 2014.
O QUE VOCÊS NÃO SABEM NEM IMAGINAM
(Ao Abdul Magide, ao Pilinhas, ao Ungulani, ao Rui, ao Zé Camudjoma e outros)
Vocês não sabem
mas todas as manhãs me preparo
para ser, de novo, aquele homem.
Arrumo as aflições, as carências,
as poucas alegrias do que ainda sou capaz de rir,
o vinagre para as mágoas
e o cansaço que usarei
mais para o fim da tarde.
A hora do costume,
estou no meu respeitoso emprego:
o de Secretário de Informação e de Relações Públicas.
Aturo pacientemente os colegas,
felizes em seus ostentosos cargos,
em suas mesas repletas de ofícios,
os ares importantes dos chefes
meticulosamente empacotados em seus fatos,
a lenta e indiferente preguiça do tempo.
Todas as manhas tudo se repete.
O poeta Eduardo White se despede de mim
à porta de casa,
agradece-me o esforço que é mantê-lo
alimentado, vestido e bebido
(ele sem mover palha)
me lembra o pão que devo trazer,
os rebuçados para prendar o Sandro,
o sorriso luzidio e feliz para a Olga,
e alguma disposição da que me reste
para os amigos que, mais logo,
possam eventualmente aparecer.
Depois, ao fim da tarde,
já com as obrigações cumpridas,
rumo a casa.
À porta me esperam
a mulher, o filho e o poeta.
A todos cumprimento de igual modo.
Um largo sorriso no rosto,
um expresso cansaço nos olhos,
para que de mim se apiedem
e se esmerem no respeito,
e aquele costumeiro morro de fome.
Então à mesa, religiosamente comemos os quatro
o jantar de três
(que o poeta inconsta
na ficha do agregado).
Fingidamente satisfeito ensaio
um largo bocejo
e do homem me dispo.
Chamo pela Olga para que o pendure,
junto ao resto da roupa,
com aquele jeito que só ela tem
de o encabidar sem o amarrotar.
O poeta, visto-o depois
e é com ele que amo
escrevo versos
e faço filhos.
15.
Teu corpo é p país dos sabores,
da súplica e do gozo,
é essa taça onde bebo
toda a loucura a que me converto,
teu corpo, meu Deus, teu corpo;
é a vida,
os estames altos,
os gestos lentos,
as carnes e as águas,
teu corpo é essa casa feliz
onde se celebra
a loucura e o frio dentro das falésias,
teu corpo é um amor de suplícios,
amor que não sobra,
não resta
e que nem mesmo de fadiga cessa.
25.
Diário é também
o ofício da morte neste país,
essa gangrena de fome e de sede
e de desentendimento.
E se o fogo em círculo, que nos cerca,
lembra nossas quotidianas invulgaridades,
cada noite aqui iluminada
pela determinada vigília dos soldados,
pela boca ácida dos seus fuzis,
é a gente que ama
nos nervos de qualquer cama
nossos amores sagrados.
28.
Dentro do fogo existe
uma pequeníssima casa,
pobre, talvez,
mas é nela que me deito todas as noites
e tu chegas-me à memória
como uma acha chega à escuridão,
trazes os odores do costume
e a boca doce.
Como o fogo é que eu te prefiro,
na verdade,
na tua pura e nua nudez,
depois, com muito cuidado,
beijar-te o cravo
que explode em teu ventre e que é quase flor,
quase baba,
quase alucinação.
*
Não faz mal.
Voar é uma dádiva da poesia.
Um verso arde na brancura aérea do papel,
toma balanço,
não resiste.
Solta-se-lhe
o animal alado.
Voa sobre as casas,
sobre as ruas,
sobre os homens que passam,
procura um pássaro
para acasalar.
Sílaba a sílaba
o verso voa.
E se o procurarmos? Que não se desespere, pois nunca o
iremos encontrar. Algum sentimento o terá deixado pou-
sar, partido com ele. Estará o verso conosco? Provavel-
mente apenas a parte que nos coube. Aquietemo-nos,
Amainemos esse desejo de o prendermos.
Não é justo um pássaro
onde ele não pode voar.
*
Por exemplo, o fogo.
O fogo estabelece o seu trabalho,
a sua centígrada destreza para arder.
E não sei se notaste
que na digital matriz das suas febres
o fogo opõe-se,
insubmisso,
a morrer.
Arde como se definitivo
e quando assim sucede tende a crescer,
busca aquela leveza das altas labaredas,
a implícita tontura das fagulhas.
O fogo arde como se quisesse fugir do chão,
das suas cavernas metalúrgicas,
ascende ao impulso dos foguetões,
à infância astral, à casa solar.
O fogo entristece, por vezes.
Chora inflamável na sua fatalidade terrestre
a estranha e lenhosa prisão
que o prende e embrutece.
Quer voar,
quer a sua ancestral condição de estrela
mas na corrida espacial com que o fogo queima,
na perpétua evasão,
a gula intestina-o
à sua pressa.
Página publicada em maio de 2015
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