ONÉSIMO DA SILVEIRA
Poeta e diplomata, nascido em Mindelo, Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, 10/2/1935) Também grafado como Onésimo Silveira.
HORA GRANDE
1
O mar sairá
Das nossas ilhas
Das nossas ruas
Das nossas casas
Das nossas almas...
0 mar irá para o mar
E limpos finalmente do lodo das algas
E libertos do sal do nosso sorriso de enteados
Seremos frutos de nós mesmos
Nascendo da barriga negra da terra...
2
Os náufragos
Do lago da nossa quietação
Erguerão os seus braços de todas as cores
E as suas mãos se fartarão
Da luz de um poente maduro!
0 negreiro estará perdido na légua do tempo
Porque a alma das nossas vozes
Não morrerá no fundo dos porões...
A fome não se alimentará da fome
E voaremos nas asas do Sol
Com o destino na palma da mão!
3
Nas feridas do seu parto
As raízes do nosso umbigo beberão a seiva
E no ventre da "mamã-terra"
Germinarão as sementes das nossas certezas
E nos embriagaremos da carne dos seus frutos...
As crianças nascerão sem metas nos olhos
E as suas mãos sujar-se-ão
Do mel do nosso olhar...
As crianças serão crianças!
Negras e loiras e brancas
Serão pétalas da mesma flor...
TÊTÊIA
Rapazes da "Estrela da Marinha"
Se vocês ainda se lembram de Têtêia
Aquela desaforada
Filha d'Antónha que vendia cuscuz
Na Porta de Madêral
E de nhô Piduca
Que era catraieiro
—Venham comigo!
Rapazes da "Estrela da Marinha"
Se vocês ainda se lembram de Têtêia
Bonitona e desaforada
Que dava que falar pelo Carnaval
Porque além de bonitona e desaforada
Era luxénta e dançadêra
—Venham comigo!
Rapazes da "Estrela da Marinha"
Se vocês ainda se lembram de Têtêia
Que fez filho com Léla de Bia de Jonzóna
Que fugiu para a Venezuela
—Venham comigo!
Venham comigo
E vamos bradar junto a praia
(Inconsoladamente — como meninos!...)
Que nao vendemos Têtêia...
Vamos levar todas as nossas lágrimas ao mar
Para que as roças nos devolvam Têtêia
AS ÁGUAS
A chuva regressou pela boca da noite
Da sua grande caminhada
Qual virgem prostituída
Lançou-se desesperada
Nos braços famintos
Das árvores ressequidas!
(Nos braços famintos das árvores
Que eram os braços famintos dos homens...)
Derramou-se sobre as chagas da terra
E pingou das frestas
Do chapéu roto dos desalmados casebres das ilhas
E escorreu do dorso descarnado dos montes!
Desceu pela noite a serenar
A louca, a vagabunda, a pérfida estrela do céu
Até que ao olhar brando e calmo da manhã
Num aceno farto de promessas
Ressurgiu a terra sarada
Ressumando a fartura e a vida!
Nos braços das árvores...
Nos braços dos homens...
(Hora grande, 1962)
QUADRO
Lá vem nhô Cacai da ourela do mar
Acenando a sua desilusão
De todos os continentes!
Ele traz o peito afogado em maresias
E os olhos cansados da distancia das horas...
Lá vem nhô Cacai
Com a boca amarga de sal
A boiar o seu corpo morto
Na calmaria da tarde!
Nhô Cacai vem alimentar os seus filhos
Com histórias de sereias...
Com histórias das farturas das Américas...
Os seus filhos acreditam nas Américas
E sabem dormir com fome...
(Hora grande, 1962)
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