Foto do autor em Fortaleza, durante a
VIII Bienal Internacional do Livro do Ceará.
JOSÉ LUIS TAVARES
JOSÉ LUIS TAVARES é cabo-verdeano, nascido na ilha de Santiago. Seu primeiro livro, Paraíso Apagado por um Trovão, recebeu o Prêmio Mário António de Poesia 2004, atribuído pela Fundação Calouste Gulbenkian. Em 2005, seu segundo livro Agreste Matéria Mundo foi contemplado com o Prêmio Jorge Barbosa. Atualmente trabalha na tradução de poemas de Fernando Pessoa e Camões.
“Neste poeta, como em poucos poetas contemporâneos de língua portuguesa, é flagrante a irrupção de novos paradigmas mediante o primacial recurso à reinvenção da linguagem.” José Luis Hopffer C. Almeida
Página do autor: http://jltavares.caboindex.com
O rio quando antilira
O rio explode. Quando as mãos
dos anjos vêm varrer a névoa.
Ungido primeiro da tristeza,
escurece-lhe a voz
nas locas onde canta o pez.
Escuto-lhe os decibéis da ira
quando por uma tarde navegável
solta seu manancial de gritos:
já não é essa mansidão que ronronam
os líricos, mas um aguilhão
saltando às têmporas.
Mar e margem amparam o fragor
que leva o desalinho às vísceras.
Na máquina do poema
é lenta a combustão que devolve
o tejo ao afago que tantas metáforas
sussurrou aos zelosos funcionários da musa.
Não há, porém, métrica que cinja
a voz de um rio quando suspira nas entranhas
avivando um passado que é cisco na memória.
As irrevogáveis trevas
1.
Alguns ligeiros dias virão
o engano na voz dos homens
o bafo sombrio dos anunciados astros
semeando o anoitecer
nos acerados campos de setembro
homem despido de razões
a quem nem a subornável malícia
dos deuses consente o duvidoso consolo
de um maio sangrando às mãos da geada
até ao fim serás pequenina árvore
aí onde se desvanece o irrestrito pulsar
das manadas
como um vento que já não soubesse
por que montes acolher-se
quando absortos sinos anunciam
o amotinado repouso dos martelos
alguns ligeiros dias virão
às moradas onde o degredo é compassivo
e reverdece a caudalosa voz das antigas fúrias
razão desta vã arte
florescendo nos vastos campos da metrópole
vaticinado sucesso dos que se extraviaram
pelo pez dos séculos
e porfiam que o infindável garrote
da intempérie
é a inocente visitação do deus
uma morada só acharás
em fundo precipício
aí onde gratos emboloram
ossos e meteoros
2.
Como som para sempre extinto,
percute-te o sono a anfíbia música
da idade — desenho de sombras sob um
céu irreal onde o convulsivo eco
prediz o harmatão, seu coro de aflição.
Hás-de saber, no entanto,
que pela tarde destas mãos
espigam tributos matizados,
simples matéria de assombro
que a nora dos versos
polvilha de épicas fulgurações.
Real é dizer — anda o mar aqui
incrustado às minhas veias e as palavras
migram como aves que um aguarelista
pintasse à calota de um céu revolto.
Ao vê-las, no sépia disfarçado
em que os séculos uivam, juro
que uma rémora friável me infiltra
o coração que antes aqueci à pedra
onde tua boca, tuas coxas arrematei
num lance que hoje me escorra a orfandade.
Porém, nem sempre a sageza dos anos
nos ensina palavras com que suster o pranto,
porque o som que se extingue
no escuro da boca
é inumana infiel memória duma outra vida
tão para sempre ida
— vagamente, um piério rumor te rediz
do mundo a inconclusa trama; agora
resta-te apenas a litania indecisa
dos corpos caminho do engano,
mas nenhuma queixa, nenhum lamento,
que sempre foi o naufrágio ciência dos audazes.
3.
Quem te disse adeus quando a manhã
se incendiou para o lado das searas?
Mar ao fundo, pobre horizonte de turista,
agora que a borrasca interdita
o polimento da alma nas escadarias do passado
— fica o hálito, um rumor de véspera,
que não chega para acender no coração
o clarão da culpa, pois onde o látego
é consorte e o desterrado sonha
uma pátria improvável, não chegam
dos deuses o juízo e o preceito.
Quem pode, caminha até ao largo
onde o mundo arde em penas virtuais.
Mas tu não precisas de razões
para saber que nenhum cromado
polimento ilude a tua salitrada vocação
para a queda, desígnio que ombreia
com o tremendo rasgão do vento
desacoitando os óxidos embutidos à nascença.
Mesmo se tudo é cinza e passagem,
a ti, negro lázaro, que para uma segunda
morte hás-de nascer, oferto estes frutos
do fraco engenho, mudável reflexo
da vã alegria, fogo que ardesse
do princípio ao fim do mundo.
De
Lisbon Blues
São Paulo: Escrituras, 2008
(Col. Ponte Velha)
Lição de urbanismo
Uma cidade é essa intérmina ameaça
de luzes, mesmo quando um véu de
névoa tolhe os horizontes que uma
infância baldia soldou ao sangue
— cosa mentale, certamente,
onde um rio grita de ausência
para as bandas do sol-posto.
O amor de passagem dá guarida
em sujos quartos acidentais.
Por vezes, um sadio rumor vegetal
nos recorda os antigos estivais quintais.
Nela quase tudo é anônimo; embora,
outrora, um simples sulco no chão
do fundador constituísse a assinatura.
Feérica paisagem, colori-la com demão,
é ofício de prosa obesa; da cidade mostrar
a agudeza e a simetria, requer poesia chã.
Lembrança de Manuel Bandeira
num outono de Lisboa
“Meus pedestres semelhantes”,
escreveste; mas eu, baleeiro da fome
sob a unção do frio,
tão aéreo cicerone me fizeram
estes claros dias de outubro.
Um tostão de azul (coisa pouca
apenas p´ra com sul rimar)
nos tetos frios do outono
ao mais triste de mim
leva a trémula consolação da cor.
Nos pátios caligráficos, ruivos amores
reinvento (hermeneuta sou dos segredos
que soterra o tempo) e virentes acenos
à pura noiva imaginada.
Real, porém, a mulher longeva
vendendo hortaliças
na viela fagulhante de turistas.
(Eu também já estive pelas suíças,
mas a apanhar morangos e castiças).
E vendo assim Lisboa (so beautiful)
assalta-me a lembrança de um outro azul
— sob suas fímbrias plantei
renques de acácias e tabuletas alusivas;
sob seus desdoirados ramos
desamores lamentei,
que não sou amigo do rei,
nem cheganças com deuses hei.
Mas se é de sua lei
que, embora triste, seja altivo amigo
da grei, tal sina não maldigo;
talvez mesmo comigo diga:
grato estou a estes claros dias
em que das lágrimas fiz maravilhas.
Página publicada em novembro de 2008
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