TOMAZ KIM
(1915 – 1967)
Tomaz Kim (1915-1967), pseudônimo de Joaquim Fernandes Tomaz Ribeiro-Grillo, nasceu em Angola e faleceu em Lisboa. Frequentou o curso de Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa, sendo posteriormente convidado para lecionar na mesma instituição. Viveu vários anos em Londres, vindo a ser influenciado pelos thirties e mantendo-se alheio aos movimentos que iam caracterizando a poesia portuguesa do século XX. Pertenceu à direção da revista Cadernos de Poesia. -saxónicos.
Obras poéticas: Em Cada Dia se Morre (1939); Para a Nossa Iniciação (1940); Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (1943); Dia de Promissão (1945); Flora & Fauna (1958), Exercícios Temporais (1966).
ANTES DA METRALHA...
Antes da metralha e do dedo da morte...
Antes dum corpo jovem, anônimo,
apodrecer, esquecido, à chuva...
Ou singra, boiando nas águas mansas...
Ou se despedaçar contra o céu indiferente...
Antes do pavor e do pranto e da prece...
Um adeus longo e triste
aos poemas amontoados no fundo da gaveta
e à renúncia ao teu amor brando
e às noites calmas e ao sonho inacabado...
Antes da morte sem mistério...
Um adeus longo e triste
à luta de que não se partilhou!
(Os quatro cavaleiros)
Tempo habitual
De nojo, o tempo, o nosso,
A perfídia estrumando
No presumir da carícia branda e sorriso
De todos.
De raiva o tempo, o nosso,
Céu, mar e terra abrasando
Em clamor de labareda e navalha afiada
E sangue.
De pavor o tempo, o nosso,
A primavera assombrando.
Exílio de ventres a fecundar e tudo o mais
Que a faz.
De amor o tempo, o nosso,
Onde uma voz espalhando
A boa nova do pântano fétido da noite
Imposta?
De nojo, de raiva, de pavor,
O tempo transido
Do nosso viver dia-a-dia!
Mas não de amor...
(Exercícios temporais)
ELEGIA
O teu corpo,
uma vez o meu altar e pecado,
O teu corpo
agora amarelo e viscoso,
hostil como a freira enclausurada,
é uma forma obscena ao sol.
Tu estás morta –
tu, o meu pão e vinho santo!
Tu foste
a minha dor,
o sol
e a chuva;
Tu foste
saudade,
tudo
e desejo,
quando nós
sofrendo,
quando nós
encontramos
uma nova luz
uma nova fé!
Tu estás morta –
tu, o meu pão e vinho santo.
MEIRELES, Cecília. Poetas Novos de Portugal. Seleção e prefácio de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos Editora Ltda, 1944. 315 p. (Coleção Clássicos e Contemporâneos, dirigida por Jaime Cortesão. Edição de 350 exemplares, numerados.
Ex. bibl. Antonio Miranda
POEMAS SEM TÍTULO
*
Será esta a noite
que li nos olhos nus de sonho
dos que a vida rejeitou?
.........................................
Agora que o sangue derramado
nos embala e nos ensinar a odiar...
Agora que o pavor e a morte
enchem o espaço...
Agora que a metralha
extingue as canções dos poetas...
Agora que o pranto é maior
e as nossas bocas já não murmuram
a palavra... irmão!
Agora... — será agora?... — Será agora
que a noite medonha tombará para sempre?
*
Poeta! deixa o vento roubar os teus poemas
e com eles salpicar a noite
de queixumes e preces e ódios...
Poeta, deixa a noite sorver os teus poemas!
Deixa a tua voz apagar-se
e os teus olhos cegarem
para as visões que a noite encerra,
e os teus ouvidos recusarem ouvir
os que pedem um sonho à vida.
Poeta, deixa a poesia morrer!
Amanhã, mais um astro morto, rolará no espaço!...
*
Para que pedir às noites sem fim o mistério,
e à infância que passou a saudade,
e ao teu corpo virgem a poesia?
Para que tentar ouvir no vento um apelo,
e no futuro uma esperança,
e no teu amor a resignação?
Para quê? — Se um silêncio implacável
não tardará a cair sobre os homens?
*
Fugir! Fugir... fugir para além do mundo,
do caos, da morte ou do futuro...
Fugir de matar aquele poeta
que fala uma língua diferente da minha
mas que vive a mesma poesia!
Fugir do sangue, da morte, do pavor!...
— Eu ainda quero conhecer
o amor da donzela que desperta...
— Eu ainda quero escrever
o poema que há em mim... e que é belo!
Senhor!
Eu não quero matar... Quero viver!
E cantar os que esqueceste...
*
POEMA
Senhor, se és tudo e todos...
— para quê as noites me oprimem
e a angústia dos grandes silêncios?
As ruas tortuosas, ausentes de sol...
O pão que tarda
e a virgem que se entrega!
Para quê o sol e a chuva
e as searas a perder de vista:
a fome!,
Senhor, se és tudo e todos?
O pranto do mundo e o clamor...
As mãos postas
e a prece jamais atendida!
Senhor, se és tudo e todos...
— para quê o sódio e as mortes
derramadas por esse mundo fora?
O pecado tantas vezes remido...
A revelação que tarda
e a dúvida pairando na noite sem fim.
Se nos fizeste de barro úmido
vil,
que culpa tivemos em pecar
Senhor, se és tudo e todos?
.................................................
Senhor anônimo e ausente!
flutua nas mil cobardias cotidianas,
o perdão e a honra que não existem
e o poema de que todos desviaram o olhar...
Senhor, se és tudo e todos...
— dai-nos a fartas searas
e a terra e o céu de todos.
“Atlântico”
*
Página ampliada e republicada em abril de 2022
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