RUY DUARTE DE CARVALHO 
                        
                        
                      Ruy Duarte de Carvalho (n. Santarém, 1941),  escritor e antropólogo angolano. 
                        
                      Português, naturalizou-se angolano na  década de 1980. É doutor em Antropologia, pela École des Hautes Études en  Sciences Sociales, em Paris. É autor de Vou  lá visitar pastores (1999), sobre os Kuvale, sociedade pastoril do sudoeste  de Angola. Na poesia, salienta Chão de  Oferta (1972), A Decisão da Idade (1976), Observação Directa (2000),  entre outros, tendo reunido em Lavra poemas de 1970 a 2000.  
                        
                      Para além da actividade literária, realizou  as longas-metragens Nelisita: narrativas nyaneka (1982) e Moia: o recado das  ilhas (1989). 
                        
                      Professor universitário, leccionou na  Universidade de Luanda, foi Professor Convidado na Universidade de Coimbra e da  Universidade de São Paulo. 
                        Fonte: wikipedia 
                        
                        
                      DlOGO CÃO ÀS PORTAS DO ZAIRE 
                        
                      Deste  lado da história 
                      o rio  morre aqui. 
                      Do mar  sabemos nos e aos capitães 
                      a fama  da conquista. 
                        
                      Faço-me  ao Sul 
                      porque  pertenço ao Norte 
                      e a  costa s6 me serve p'ra cumprir 
                      tarefas  de abandono. 
                        
                      Meu fim  é circular, ir mais além. 
                      Por isso  eu sei de estrelas 
                      direções 
                      e nada  sei do fruto 
                      que se  projecta e espera. 
                        
                      Cumpro  tarefas, sim, porque viajo. 
                      Assim  nasci 
                      sabendo  o que me aguarda apos a descoberta. 
                      Fronteiras 
                      só  conheço as do meu lar 
                      e sei  amá-lo, só, 
                      noutras  distâncias. 
                        
                      De Deus,  empreendi que mora aqui no mar, 
                      porque  sou eu 
                      quem lhe  constrói a face. 
                        
                      Ao Rei e  a Vos  
                      apenas  dou notícia do rumo horizontal. 
                        
                      Pois que  sabeis da vertical sagueza? 
                        
                      * 
                        
                      Sei  medir hoje, enfim, com muito mais rigor, a força da distância.  
                      Sei  decompô-la em tempo, espaço, velocidade e som. 
                        
                      Revendo-te,  sereno, é de tal forma denso o teu volume 
                      e  natural o teu contorno exacto e fino 
                      que  dir-se-ia não haver sequer 
                      um tempo  em que me fiz a recordar-te. 
                      Entre os  pólos da distância retenho tão-somente a ponte, 
                      quero  dizer, a velocidade. 
                      Das  viagens não conservo uma noção que exceda um breve 
                      sono,  sonho, lapso de altura, vertical perfil. 
                        
                      Vou  arriscar uma noção de ausência a elaborar humilde 
                      na hora 
                      do  encontro/reencontro. 
                      Imponho  a tela crua que teci distante 
                      (e que  transporto do país do sono) 
                      a forma  testemunho da memória. 
                      A minha  percepção faz-se madura. 
                        
                      Retenho  a sombra, apenas, do que — revisto ou novo — 
                      adrega  preservar a virgindade 
                      e a  febre do contorno a sua audácia. 
                      Renovo a  nitidez das referências. 
                        
                      A vaga  geografia das ausências imponho uma paisagem  
                      reassumida,  renovada de ardor e nitidez amável. 
                        
                      Adquiro  assim um depurado entendimento do que é posse. 
                        
                      Tenho  também que o meu crescer se faz  
                      de cinza  acumulada pelos regressos — 
                        
                      uma  brancura donde emerge opaca  
                      a  medular estrutura da paisagem. 
                        
                      Não nos  separa espaço, nem distância ou tempo. 
                      Entre  nos dois 
                      apenas o  painel da mais recente ausência 
                      aberto  para os sinais 
                      do  encontro a conquistar. 
                      Não mais  do que a distância de um parágrafo. 
                        
                      E a  ponte, a velocidade. 
                        
                        
                      PRIMEIRA PROPOSTA PARA UMA  NOÇÃO GEOGRÁFICA    
                      solo — pastor 
                        
                      Sou  testemunho da noção geográfica 
                      que  identifica as quatro direções 
                      do sol  as muitas mais que o homem tem. 
                      Sou mensageiro  das identidades 
                      de que  se forja a fala do silêncio. 
                      Habito  um continente e a comunhão prevista 
                      além dos  horizontes por transpor. 
                      Renovo-me  em saber, olhando o sol 
                      acesa a  cor para além destas fronteiras. 
                        
                      E se me  ocorre o mar e me detenho 
                      a frente  dos meus gados indefesos 
                      eu  saberei da costa o quanto me prolonga 
                      além das  águas e dos meus recursos. 
                      Olhando  o mar eu sei que no temor 
                      vivo em  meu sangue, ardente e tão pesado 
                      que há-de  acorrer ao sangue de meus filhos 
                      se  deposita a mágoa antiga já 
                      em que  fermento a raiva e o vigor 
                      para  conquistar o mar e devolver 
                      a cor o  seu sentido e a dignidade. 
                      Circulo  a plataforma das viagens 
                      para  inventar as direções do mar 
                      além de  estéreis nuvens. 
                      Um chão  propício para erguer o encontro 
                      entre o  destino e o corpo. 
                        
                      Se as  minhas mãos se tingem de vermelho, ao norte 
                      e eu  todavia me reservo ao sul 
                      porque  da terra quero a superfície plana 
                        
                      e a  natureza vítrea do seu rosto 
                      e a dádiva  frugal de quanto a terra da 
                      sem que  lhe fira o ventre 
                      eu digo  — 
                      a terra  toda, a terra, a funda terra... 
                      e uma  noção mais vasta me sugere 
                      a  extrema dimensão do continente 
                      e a  comunhão de muitas outras vozes 
                      vertendo  o mesmo som no vão da noite. 
                      E a  forma de dois pés e o pó que os cerca 
                      as  mesmas latitudes para um só pisar 
                      em cor  de pés e pó omnipresente. 
                        
                      Habito o  cheiro e quantas coisas simples  
                      me fazem  merecer o pó pisado. 
                        
                      E se eu  falar de exílios mergulhado em dambas 
                      ou  penetrar florestas de umidade alheia 
                      ou me  dessedentar em águas que me expulsem 
                      por lhes  negar respeito e vê-las fáceis 
                      ainda  assim recordarei montanhas 
                      quando a  manha me recordar cacimbos 
                      e  saberei que estas imagens novas 
                      por  serem espelho de outras me pertencem 
                      como se  vê-las fosse a minha origem. 
                        
                      Nem  tanto a voz cativa de um lugar  
                      nem a  função contida pela herança  
                      nem a  ciência exacta de um relevo. 
                        
                      Habito  um corpo móvel de paisagens  
                      protegidas  por clareiras de fartura.  
                      Habito o  movimento e a minha pátria  
                      é todo o  continente de que não sei o fim. 
                        
                      Irei tão  longe quanta for a sede e a urgência da mudança. 
                      Cruzar-me-ei  com as nuvens de outros corpos 
                      movidos  por idêntica voragem. 
                      A  diástole da vida me governa. 
                      Atingirei  o extremo norte 
                      se a  tanto me levar 
                      o corpo  fustigado pela carência das águas. 
                        
                      Habito  as fontes todas do deserto 
                      e  obedeço ao vento, ao sol, as luas da verdura. 
                      E nada  me detém se a sede anima 
                      o sangue  aceso deste corpo enxuto. 
                        
                      Devasso  a região dos Grandes Lagos  
                      e as  baixas pantanosas de Okavango.  
                      Bordejo  os areais da suave brisa: 
                      Chaibi,  Namibe, Kalaari 
                      a estepe  do Masai, montes do Karoo 
                      que é  onde a planta luta por florir 
                      e  aguarda paciente a gota de água. 
                      Mergulho  na garganta de Olduvai 
                      e calco  em meu andar 
                      os fósseis  mais remotos 
                      argamassada  em pedras a grandeza 
                      da  inusitada fúria que transforma 
                      a mão em  arma e os olhos em zagaias. 
                        
                      Repouso  nas ruínas de Ashanti  
                      nas  construções ciosas do Benim  
                      nas alas  circulares do Zimbabwe: 
                      adormeço  vertido no regaço 
                      do odor  antigo do poder vencido 
                      e na  serena placidez do tempo. 
                        
                      Monomotapa,  Ghana, Luba 
                      reinos,  impérios, fundadores de impérios. 
                      Cavaleiros  de Kanem-Bornu 
                      mercadores  de Kano, Zaria e Nok 
                      profetas  do Congo 
                      muquixis  da Lunda 
                      adoradores  do ferro: 
                      Ashanti,  Ibos  
                      sentinelas  dos rios: 
                      Núbios,  Kikuios  
                      sóbrios  amantes do leite: 
                      Masai,  Hereros 
                             
                        cultivadores de anharas  
                      caminheiros  da estepe  
                      sombras  da savana. 
                        
                      YORUBA  
                      (4) 
                        
                      Três  amigos eu tinha. 
                        
                      Pediu-me  o primeiro  
                      que  dormisse na esteira.  
                      Pediu-me  o segundo  
                      que  dormisse no chão.  
                      Pediu-me  o terceiro  
                      para  dormir no seu peito. 
                        
                      Cedi a  voz do terceiro  
                      e vi-me  transportado a um grande rio. 
                        
                      E do rio  eu vi o rei  
                      e o rei  do sol. 
                        
                      E vi  palmeiras  
                      tão  carregadas de fruto  
                      que o  peso as vergava  
                      e as  palmeiras morriam. 
                        
                        
                      ClCLO DO FOGO 
                        
                      Há  coisas que se choram muito anteriormente.  
                      Sabe-se  então que a história vai mudar. 
                        
                        
                      ABERTURA  
                        
                      Silêncio  mas por que e não apenas vento  
                      até que  a pedra se arredonde enfim  
                      e a água  se expanda  
                      raiada  no verde? 
                        
                      Um sono  que se estenda obliquamente  
                      entre a  murada construção da idade  
                      e as  veredas ordenadas pelo passado. 
                        
                      Uma memória  a ter-se  
                      mas não  aquela que o futuro impeça. 
                        
                      O sal,  por toda a parte. 
                      Então  pequenos lagos se acrescentam 
                      a partir  de alguma fenda original. E são taças de mar 
                      que dão  contorno ao continente agreste. 
                        
                        
                      
                      DIMENSÃO – REVISTA INTERNACIONAL DE  POESIA.         ANO  XX – No. 30.  Editor Bilharino.   Capa; Visual de Gabrile -Alfo Bertozzi.  Uberaba, Minas Gerais, Brasil: 2000.  200  p.   No. 10 787      Uberaba, MG – Brasil.  Capa: Visual de Gabriele-Aldo Bertozzi. Editor: Guido Bilharino 200 p.                   Ex. biblioteca de Antonio  Miranda 
                        
                        
                              1 — NOÇÃO GEOGRÁFICA 
                         
         Canhões de areia  cerzidos 
          língua de leve 
          permanente e branda. 
   
          São espasmos de água 
          de que a memória cedo se apodera. 
   
           
                              Memória  nocturna e vaga. 
                         
          São os caudais do silêncio 
                     a densidade grata do  vazio. 
                              É o  silêncio 
                     tangente às curvas do  tempo. 
   
           
                              A cama  horizontal de uma distância. 
          O verão poisa nas coisas e  adormece tudo. 
   
   
           Rangente e nu leito de areia  quente 
           os pés e o sopro e o vento que o  descuida. 
   
           Exígua sombra de uma breve  margem 
           onde repousa o gado e quem o  guarda. 
   
   
           O mar desponte quando for além: 
           um morro em branco adverte a  distância. 
                       
                         
            Dizer o verde, de novo. 
   
            O sal, por toda a parte. 
            Então, pequenos lagos se  acrescentam 
            a partir de alguma fenda  original. E são taças de 
                                                                              mar 
            que dão contorno ao continente  agreste. 
   
   
   
            E tem também um povo que nunca 
            ninguém viu e as crónicas  referem 
            por ouvir falar. 
   
            Era um povo, dizia-se, 
            tão amante do leite que não  sabia 
            recordar o mel. 
                       
                      * 
                      Página ampliada e  republicada em abril de 2024 
                      
                      Página  publicada em agosto de 2009 
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