MÁRIO ANTÓNIO
Poeta, contista, e ensaísta angolano, Mário António Fernandes de Oliveira, nascido em 1934 e falecido em 1989, ocupa um lugar de destaque na vasta literatura angolana.
A sua ficção permanece a meio caminho entre a crónica lírica e o conto.
Enquanto ensaísta crítico, Mário António estudou, aprofundadamente, a literatura angolana, bem como as próprias estruturas histórico-sociais de Angola, ou não fosse licenciado em Ciências Sociais e Políticas e Doutorado em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
Quanto à sua poesia, poder-se-á dizer que Mário António começa por utilizar, inteligentemente, os modelos brasileiros (muito usados na época, até mesmo pela proximidade dos temas, sentimentos e realidades entre Angola e o Brasil), recorrendo também a linhas literárias europeias.
Entrando mais concretamente na temática da sua produção poética, pode dizer-se que esta está amplamente marcada pela temática da infância em que dominam os valores africanos da religiosidade e da fraternidade.
A sua poética está efetivamente marcada por esta "saudade" de um passado real: "saudade" do mundo da infância, em que as relações puras eram possíveis.
Em todas as fases poéticas de Mário António verificamos a permanente oposição entre dois campos distintos - campos esses que marcam a própria vida angolana: de um lado temos a cidade da infância, o tempo de todas as possibilidades, o local da união, o sítio e o tempo mágico em que o homem dependia apenas dos fenómenos da natureza e guiava os seus passos pelos astros; do outro lado, a camada do cimento, as grandes construções que destruíam o espaço amplo e livre do antigamente, a sociedade mesclada: brancos, negros e mestiços. Fonte: http://www.infopedia.pt/
NOITES DE LUAR NO MORRO DA
MAIANGA
Noites de luar no Morro da Maianga.
Anda no ar uma canção de roda:
"Banana podre não tem fortuna
Fru-tá-tá, fru-tá-tá..."
Moças namorando nos quintais de madeira
Velhas falando conversas antigas
Sentadas na esteira
Homens embebedando-se nas tabernas
E os emigrados das ilhas...
— Os emigrados das ilhas
Com o sal do mar nos cabelos
Os emigrados das ilhas
Que falam de bruxedos e sereias
E tocam violão
E puxam faca nas brigas...
O ingenuidade das canções infantis
Ó namoros de moças sem cuidado
Ó histórias de velhas
Ó mistérios dos homens
—Vida!:
Proletários esquecendo-se nas tascas
Emigrantes que puxam faca nas brigas
E os sons do violão
E os cânticos da Missão
Os homens
Os homens
As tragédias dos homens!
FUGA PARA A INFÂNCIA
Nas tardes de domingo
(cheirava a doce de coco e rebuçado)
os meninos brincavam
iam passear ao mar
até o Morro iam
ver a gente.
O menino ficou preso
quando cresceu.
E nas tardes de domingo
vozes vinham chamá-lo
vinham ecos de vozes
que lindas vozes o menino ouvia!
Mas o menino estava preso
e não saía...
Numa tarde de domingo
os outros meninos vieram chamar
o menino preso...
E foi nessa tarde de domingo
(cheirava a doce de coco e rebuçado)
que o menino fugiu para não voltar.
DONAS DO OUTRO TEMPO
Donas do outro tempo
Vejo-as neste retrato amarelado:
Como estranhas flores desabrochadas
Negras, no ar, soltas, as quindumbas.
Panos garridos nobremente postos
E a posição hierática dos corpos.
São três sobre as esteiras assentadas
Numa longínqua tarde de festejo.
(Tinha ancorado barco lá no rio?
Havia bom negócio com o gentio?
Celebrava-se a santa milagrosa
Tosca, tornada cúmplice de pragas
Carregada de ofertas, da capela?)
E, a seu lado, sentados em cadeiras,
Três homens de chapéu, colete e laço.
Botinas altas, calças de cheviote.
Donas do tempo antigo, que perguntas
Poderia fazer aos vossos olhos
Abertos para o obturador da fotográfica?
Senhoras de moleques e discípulas
Promotoras de negócios e quitandas
Rendilheiras de jinjiquita e lavarindo
Donas que percebíeis a unidade
Íntima, obscura, do mistério e do desígnio
Atentas ao acaso que é a vida
(Há sopros maus no vento! Gritos maus
No rio, na noite, no arvoredo!)
E que, porque sabíeis que vida é larga e vária
E vários e largos os caminhos possíveis
A nova fé vos destes, confiantes.
O que ficou de vós, donas do outro tempo?
Como encontrar em vossas filhas de hoje
A vossa intrepidez, a vossa sabedoria?
Os tempos são bem outros e mudados.
A tarde da fotografia, irrepetível.
Agua do rio Cuanza não para de correr
Sempre outra e renovada.
E dessa fotografia talvez hoje só exista
Na vilória onde as casas são baixas e fechadas
E têm corpo, pesam, as sombras e o calor
A sobre farfalhante da mulemba
Que vos deu sombra e fresco nesse domingo antigo.
AVÓ NEGRA
Minha avó negra, de panos escuros
da cor do carvão
Minha avó negra, de panos escuros
que nunca mais deixou.
Andas de luto.
Toda é tristeza
Heroína de ideias,
rompestes com a velha tradição
dos cazumbis* dos quimbandas**.
Não chinguilas*** no óbito
tuas mãos de dedos encarquilhados
tuas mãos calosas da enxada
tuas mãos que me preparam
(quitabas**** e quifututilas*****),
tuas mãos, ora tranquilas,
desfiam as contas gastas
de um rosário já velho.
Já não sabes chinguilar
não fazes mais que rezar.
Teus olhos perderam o brilho.
E da tua mocidade
só te ficou a saudade
e um colar de missangas.
Avozinha, às vezes
ouço vozes
que te segredam saudades
da tua velha senzala
da cubata onde nasceste
das algazarras dos óbitos
do sonhos do alambramento******
que supunhas merecer.
E penso que
se pudesses
talvez revisses
as velhas tradições.
*cazumbi - espírito, alma dos mortos; feitiço,
**quimbanda — curandeiro,
***chinguila - dançar em êxtase,
****quitaba - pasta comestível.
*****quifututila - doce angolano.
******alambramento – dote ou presente de noivado.
MÁKUA ANTOLOGIA POÉTICA 2. Sá da Bandeira, Angola: Publicações Imbodeiro, 1963. 61 p. Ex. bibl. Antonio Miranda
POEMA
Não como herói te canto, pois não faltam
Os que te erguem bandeiras desfraldadas
Tu como herói — guias, eles, no entanto
Da tua condição
Entre esta escuridão
E a noite que te atrai.
És, para eles, o Marcado de Revoltam,
O Filho que incendeia a casa de seu pai.
É teu retrato
O de um garoto ingénuo de olhos maus.
Tens neles teus cantores
Que não em mim
Em quem batem, como eco,
Teus gritos desde a História.
Pois,
De nós os dois
É só de mim que falo
Malfaçon des mulatresses
Olhos broncos de inêxito
Desespero
Olhar doce cambulando nos portos
Onde continuam
Rios de sangue e esperma
A produzir-me.
É só de mim que falo
Frustre Apolos dos hospícios
Prisioneiro gigante conformado
Gênio sombrio de escura submissão.
E também
De minhas versões-bem
Na roda
Onde sempre de fora
Permaneço:
Bem-falante, Educado, Bem-vestido
Que nunca fui
Apenas
Porque houve
Sempre
Uma voz doce, aflautada
Que o dissesse.
Eis como me canto
Malfaçonado deus, protótipo futuro
Recusado
Por quantos
Apenas por existirem
Me promovem.
CASA MORTUÁRIA
Paredes amarelas entre as árvores...
Entre apagados homens silenciosos,
Uma mulher se ergue.
Abre os braços em cruz,
Cai-lhe a coberta negra.
Uns passos dá — levita!
Lança um gemido — canta!
Sua voz modulando
Sintoniza o Além.
— E eis que tudo se toca
O dividido se une:
O que fica ao que foi,
O que vive ao já mortos.
...............................................
— Um dia, do meu se dividido
Reclamareis a unidade
Conclamando os espíritos sobre mim.
Velhas mulheres negras do meu sangue!
UM MUNDO
Além da fita preta
Onde se quebra
O colorido cubista da Cidade,
Monocromático informalista
Medra
Um Mundo
Onde os homens não são
Formigas ruidosas
Mas deuses lentos, dignos;
Onde as mulheres desenham
A clave musical
Com ancas e latas de água;
Onde os gestos parados dos garotos
Um momento fixados
Reclamam a Poesia
De uma tarde só neles
Com sol doirado, poeira, papagaios
E sem temor algum
E sem nenhuma fome.
MANHÃ
É julho ainda. Nasce
Da terra a manhã. Sobe
Como maré, afoga-nos
A todos. Subitamente
A unidade toma-nos
De imersos. Confiantes
Os corpos desta luz, olhamo-nos:
E são olhos que nos olham;
A mão erguida uma outra mão
Levanta. A palavra parece-nos
A mais. Só nos espanta
Não ver as bolhas de ar
Que, dos nossos pulmões,
Ganham o céu.
*
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http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/angola/angola_index.html
Página ampliada em janeiro de 2022
Página publicada em maio de 2015; ampliada em janeiro de 2016.
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