ANTERO ABREU
Antero Alberto Ervedosa de Abreu nasceu em Luanda, Angola, em 1927. Formou-se em Direito pela Universidade de Lisboa. Magistrado.
Publicou: Permanência, Edições 70, Angola/Lisboa, 1979.
ARTE POÉTICA
A poesia anda por aí
Nas paredes de barro nas inscrições vitoriosas nas
ruas dos musseques* varridos ao domingo
A poesia anda por aí
No olhar atento do soldado da Funda na bazuca
disparada no Leste nas emboscadas do Cuanza-Sul
A poesia anda por aí
No "primeiro passo de guerrilha" dos pioneiros no
drapejar da bandeira negra e rubra no chapéu de
caqui do combatente e na pistola do comandante
A poesia anda por aí
No gesto sábio do pescador que atira a rede no
lento de séculos acender o cachimbo nas sanzalas**
no tropel das manadas de gado no Cuanhama
A poesia anda por aí
No germinar do milho na recolha da mandioca
no bater ritmado do pilão
A poesia anda por aí
No mungir as vacas no Virei no matraquear dos
teares da Textang no correr da linha na máquina
de costura do alfaiate
A poesia anda por aí
Na lavagem da roupa à beira-rio no deslizar da
canoa chimbicada*** na luz trêmula do candeeiro
de petróleo
A poesia anda por aí
Nos caminhos de pé posto no roncar das camionetas
no no asfalto das estradas no reboar das águas
na barragem de Cambambe
A poesia anda por aí
No alvejar do algodão na Baixa de Cassange nos
clarões do gás queimado na baía da Cabinda no
reluzir dos peixes de Moçâmedes e da Baía Farta
A poesia anda por aí
No primeiro grito dos recém-nascaidos nas maternidades
ou nos quimbos**** adormecidos
A poesia anda por aí
Na morte de cada soldado chame-se Gika ou mal
tenha nome que se decore
A poesia anda por aí
No rosear das mangas no amarelecer das banana
do Cavaco no açucarar das laranjas do Loje
A poesia anda por aí
No faiscar dos diamantes no escorrer do minério
no porto do Saco nos graves movimentos dos guindastes
dos cais
A poesia anda por aí
No hábil talhar a madeira do escultor quioco nos
trilos das marimbas do Duque de Bragança nos
"pintados" das cabindas
A poesia anda por aí
Na força dos homens na abnegação das mulheres
nos olhos abertos ao futuro das crianças
A poesia anda por aí
Coleando entre as sanzalas e as ruas das cidades
no meio do povo nos utensílios e na maneira como
são segurados
A poesia anda por aí
Silenciosa mas viva esplêndida maravilhosa na harmonia
das coisas e dos seres que as utilizam
A poesia anda por aí
Buscando uma voz uma rima uma página de papel
ou o acetato dum disco
A poesia anda por aí
A poesia anda por aí
Ó poetas de Angola
Ó poetas da Angola de hoje
Segurai a poesia que anda por aí
E fazei dela um facho a ardente de Esperança
e de Vontade
A Espera na e a Vontade dum povo que busca a Liberdade
*musseques — favelas
**sanzala - aldeia.
***chimbicada — "canoa chimbicada" longa.
***8quimbo — aldeia.
Página publicada em janeiro de 2016
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