AGOSTINHO NETO
(1922-1979)
Antonio Agostinho Neto nasceu em Icola e Bengo, Angola. Estudou medicina em Portugal. Foi um dos dirigentes do movimento de independência de seu país e, triunfante, foi o primeiro presidente da nova república. Biografia política controversa e uma obra literária reconhecida internacionalmente.
TEXTO EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
O CHORO DE ÁFRICA
O choro durante séculos
nos seus olhos traidores pela servidão dos homens
no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas
nos batuques choro de África
nos sorrisos choro de África
nos sarcasmos no trabalho choro de África
Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal
meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no círculo das violências
mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas
e das hemorragias dos ritmos das feridas de África
e mesmo na morte do sangue ao contato com o chão
mesmo no florir aromatizado da floresta
mesmo na folha
no fruto
na agilidade da zebra
na secura do deserto
na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos
mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens
o choro de séculos
inventado na servidão
em historias de dramas negros almas brancas preguiças
e espíritos infantis de África
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas
o choro de séculos
onde a verdade violentada se estiola no circulo de ferro
da desonesta forca
sacrificadora dos corpos cadaverizados
inimiga da vida
fechada em estreitos cérebros de maquinas de contar
na violência
na violência
na violência
O choro de África e' um sintoma
Nos temos em nossas mãos outras vidas e alegrias
desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas - por nós!
E amor
e os olhos secos.
Adeus à hora da largada
Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis
Mas a vida
matou em mim essa mística esperança
Eu já não espero
sou aquele por quem se espera
Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida
Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos
Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura
Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.
(Sagrada esperança)
CRIAR
Criar criar
criar no espírito criar no músculo criar no nervo
criar no homem criar na massa
criar
criar com os olhos secos
Criar criar
sobre a profanação da floresta
sobre a fortaleza impudica do chicote
criar sobre o perfume dos troncos serrados
criar
criar com os olhos secos
Criar criar
gargalhadas sobre o escárnio da palmatória
coragem nas pontas das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas violentadas
firmeza no vermelho-sangue da insegurança
criar
criar com os olhos secos
Criar criar
estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o choro das crianças
paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos.
Criar criar
criar liberdade nas estradas escravas
algemas de amor nos caminhos paganizados do amor
sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forcas
[simuladas
criar
criar amor com os olhos secos.
ASPIRAÇÃO
Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas
Ainda o meu sonho de batuque em noites de luar
Ainda os meus braços
ainda os meus olhos
ainda os meus gritos
Ainda o dorso vergastado
o coração abandonado
a alma entregue à fé
ainda a dúvida
E sobre os meus cantos
os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado
Ainda o meu espírito
ainda o quissange
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco
Ainda a minha vida
oferecida à Vida
ainda o meu desejo
Ainda o meu sonho
o meu grito
o meu braço
a sustentar o meu Querer
E nas sanzalas
nas casas
nos subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda
O meu Desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.
*
Sou um mistério.
Vivo as mil mortes
que todos os dias
morro
fatalmente.
Por todo o mundo
o meu corpo retalhado
foi espalhado aos pedaços
em explosões de ódio
e ambição
e cobiça de glória.
Perto e longe
continuam massacrando-me a carne
sempre viva e crente
no raiar dum dia
que há séculos espero.
Um dia
que não seja angústia
nem morte
nem já esperança.
Dia
dum eu-realidade.
HAVEMOS DE VOLTAR
Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
haveremos de voltar.
Às nossas terras
vermelhos do café
brancas de algodão
verdes dos milharais
haveremos de voltar
Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
haveremos de voltar
À frescura da mulemba *
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
haveremos de voltar
À marimba e ao quissange **
ao nosso carnaval
haveremos de voltar
Haveremos de voltar
à Angola libertada
Angola independente.
*mulemba – árvore de fruto comestível.
**quissange – instrumento musical, para dedilhar.
Extraído de
POESIA SEMPRE – Revista Semestral de Poesia. ANO 4 – NÚMERO 7 – JULHO 1996. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 1996. Ex. bibl. Antonio Miranda
Partida para o contrato
O rosto retrará a alma
amarfanhada pelo sofrimento.
Nesta hora de pranto
vespertina e ensanguentada
Manuel
o seu amor
partiu para S. Tomé
para lá do mar
Até quando?
Além no horizonte repentinos
o sol e o barco
Se afogam
no mar
escurecendo
o céu escurecendo a terra
e a alma da mulher
Não há luz
não há estrelas no céu escuro
Tudo na terra é sombra
Não há luz
não há norte na alma da mulher
Negrura
Só negrura
Kinaxixi
Gostava de estar sentado
num banco do Kinaxixi
às seis horas duma tarde muito quente
e ficar...
Alguém viria
talvez sentar-se
sentar-se ao meu lado
E veria faces negras da gente
a subir a calçada
vagarosamente
exprimindo ausência no kimbundu mestiço
das conversas
Veria os passos fatigados
dos servos de pais também servos
buscando aqui amor ali glória
além uma embriaguez em cada álcool
Nem felicidade nem ódio
Depois do sol posto
acenderiam as luzes
e eu
iria sem rumo
a pensar que a nossa vida é simples afinal,
demasiado simples
para quem está cansado e precisa de marchar.
Aqui no cárcere
Aqui no cárcere
eu repetia Hikmet
se pensasse em ti Marina
e naquela casa com uma avó e um menino
Aqui no cárcere
eu repetia os heróis
se alegremente cantasse
as canções guerreiras
com que o nosso povo esmaga a escravidão
Aqui no cárcere
eu repetiria os santos
se lhes perdoasse
as sevícias e as mentiras
com que nos estralhaçam a felicidade
Aqui no cárcere
a raiva contida no peito
espero pacientemente
o acumular das nuvens
ao sopro da História
Ninguém
impedirá a chuva
Cadeia da PIDE de Luanda
Julho de 1960
TEXTOS EN ESPAÑOL
EL LLANTO DE ÁFRICA
El llanto durante siglos
en sus traidores por la esclavitud de los hombres
en el deseo alimentado entre ambiciones de soplos románticos
en los tambores llanto de África
en las sonrisas llanto de África
en los sarcasmos en el trabajo llanto de África.
Siempre el mismo llanto en nuestra alegría inmortal
mi hermano Nguxi y mi amigo Mussunda
en el círculo de las violencias
aun la magia poderosa de la tierra
y de la vida fluyente de las fuentes y de todas lpartes y de todas las almas
y de las hemorragias de los ritmos de las heridas de África
hasta en el florecer aromatizado de la selva
hasta en la hoja
en el fruto
en la agilidad de la cebra
en la sequedad del desierto
en la armonía de las corrientes o en el sosiego de los lagos
hasta en la belleza del trabajo creador de los hombres.
El llanto de siglos
inventado en la esclavitud
en histerias de dramas negros almas blancas perseguidas
y espíritus infantiles de África
las mentiras llantos verdaderos en sus bocas.
El llanto de siglos
donde la violada verdad se consume en el círculo de hierro
en la deshonesta fuerza
sacrificadora de los cuerpos cadavéricos
enemiga de la vida
cerrada en los estrechos cerebros de máquinas de contar
en la violencia
en la violencia
en la violencia.
El llanto de África es un síntoma.
¡Nosotros tenemos en nuestras manos otras vidas y alegrías
desmentidas por nosotros en los lamentos falsos de sus bocas!
Y amor.
Y los ojos secos.
Extraído de POETAS AFRICANOS CONTEMPORÁNEOS, org. Fayada Jamis, Virgilio Piñera, Armando Álvarez Bravo, Manuel Cabrera y David Fernándes. (Traductores). Madrid: Biblioteca Jucar, 1975.
Despedida en el momento de partir
Madre mía
(oh madres negras cuyos hijos han partido),
me enseñaste a esperar y confiar
como tú lo hiciste en las horas del desastre.
Pero en mí
la vida ha matado esa esperanza misteriosa.
Ya no espero más,
soy yo el esperado.
Nosotros mismos somos la esperanza,
tus hijos,
viajando hacia una fe que nutre la vida.
Nosotros, los hijos desnudos de los matorrales,
criaturas sin instrucción que juegan con pelotas de trapo
en las llanuras del mediodía,
nosotros mismos
conchabados para quemar nuestras vidas en los cafetales,
negros ignorantes.
que deben respetar a los blancos
y temer a los ricos,
somos tus hijos del barrio de los nativos
donde nunca llega la electricidad;
hombres que mueren ebrios,
abandonados al ritmo de los tam-tams de la muerte,
tus hijos,
que tienen hambre, que tienen sed,
que se avergüenzan de llamarte madre,
que tienen miedo de cruzar las calles,
que tienen miedo de los hombres.
Somos nosotros mismos,
la esperanza de la vida recobrada.
Extraído de POESIA AFRICANA DE HOY. Selección y versión de William Shand y Rodolfo Benasso. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1968.
NETO, Agostinho. Sagrada esperança. Poemas. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1986. 31 p + XXI 21,5x30 cm.
Ex. bibl. Antonio Miranda
Comboio africano
Um comboio
subindo de difícil vale africano
chia que chia
lento e caricato
Grita e grita
quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou
Muitas vidas
ensoparam a terra
onde assentam os rails
e se esmagam sob o peso da máquina
e no barulho da terceira classe
Grita e grita
que esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou
Lento caricato e cruel
o comboio africano...
Fogo e ritmo
Sons de grilhetas mas estradas
cantos de pássaros
sob a verdura húmida das florestas
frescura na sinfonia adocicada
dos coqueirais
fogo
fogo no capim
fogo sobre o quente das chapas do Cayatte
Caminhos largos
cheios de gente
em êxodo de toda a parte
caminhos largos para os horizontes fechados
mas caminhos
caminhos abertos por cima
da impossibilidade dos braços.
Fogueiras
dança
tamtam
ritmo
Ritmo da luz
ritmo na cor
ritmo no som
ritmo no movimento
ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços
ritmo nas unhas arrancadas
Mas ritmo
ritmo
Ó vozes dolorosas de África!
NETO, Agostinho. Poesia. Luanda: INALD, 1998. Capa dura e sobrecapa. 130 p. ilus. N. 01 237
Ex. biblioteca de Antonio Miranda
Quitandeira
A quitanda.
Muito sol
e a quitandeira à sombra
da mulemba.
— Laranja, minha senhora
laranjinha boa!
A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.
A quitandeira
que vende fruta
vende-se.
— Minha senhora
laranja, laranjinha boa!
Compra laranjas doces
compra-me também o amargo
desta tortura
da vida sem vida.
Compra-me a infância do espírito
este botão de rosa
que não abriu
princípio impelido ainda para um início.
— Laranja, minha senhora!
Esgotaram-se os sorrisos
com que chorava
eu já não choro.
E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas
enterrado na roças
se o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem.
Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade de senhores ricos
a alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.
Aí vão as laranjas
como eu ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.
Tudo tenho dado.
Até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-as aos poetas.
Agora vendo-me eu própria.
— Compra laranjas
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida
o meu preço é único:
— sangue,
Talvez vendendo-me
eu me possua.
— Compra laranjas
Velho negro
Vendido
e transportado nas galeras
vergastado pelos homens
linchado nas grandes cidades
esbulhado até ao último tostão
humilhado até ao pó
sempre vencido.
É forçado a obedecer
a Deus e aos homens
perdeu-se
Perdeu a pátria
e a noção de ser
Reduzido a farrapo
macaquearam seus gestos e a sua alma
diferente
Velho farrapo
negro
perdido no tempo
e dividido no espaço!
Ao passar de tanga
com o espírito bem escondido
no silêncio das frases côncavas
murmuram eles:
Pobre negro!
E os poetas dizem que são seus irmãos.
1948
Para além da Poesia
Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas dos embondeiros
de braços erguidos
No ar o cheiro verde as palmeiras queimadas
Poesia africana
Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha de olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó-de-arroz
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa
No céu o reflexo do fogo
e as silhuetas os homens negros batucando
de braços erguidos
No ar a melodia quente das marimbas
Poesia africana
E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone
Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.
Consciencialização
Medo no ar!
Em cada esquina
sentinelas vigilantes incendeiam olhares
em cada casa
se substituem apressadamente os fechos velhos
das portas
e em cada consciência
fervilha o temor de se ouvir a si mesma
A História está a ser contada
de novo
Medo no ar!
Acontece que eu
homem humilde
ainda mais humilde na pele negra
me regresso África
para mim
com os olhos secos.
Agosto de 1951
*
Página ampliada e republicada em abril de 2023
|