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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
Tu país está feliz

Tu país está feliz Tu país está feliz

Edição em Português

11ª. edição, 2ª. em português

Brasília: Thesaurus, 2004  - 58 p.

ISBN 85-7062-440-9

FOTO DA CAPA: Brito Garcia

Editada com o apoio do FAC

© by Antonio Miranda   

 

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UMA CANTATA IRREVERENTE

Elga Pérez-Laborde

Professora doutora de Teoria Literária

Universidade de Brasília

 

Já transcorreram trinta anos mas nunca me esqueci de Tu País Está Feliz. Assistir à estréia do espetáculo no Teatro Ateneu de Caracas foi uma verdadeira comoção. Era uma encenação diferente, excepcional, por isso recebeu a ovação do público e o reconhecimento da crítica especializada. Uma cantata pela vida, ao idealismo de nossos corações que gritavam rebeldia e mostravam nossa ânsia por mudar o mundo. Também o nosso otimismo que abrigava o protesto contra as injustiças nos duros anos da década de 70. Foi algo que nos estremeceu porque nos interpretava de alguma maneira, porque sintetizava poeticamente nossa vitalidade espiritual frente a um mundo ameaçador. Mais próximo e palpável do que

os audazes desnudos de Hair e dos desconcertantes desafios de Woodstock e, até mesmo que as canções de Joan Baez ou dos Beatles.

 

          A inspiração poética de António Miranda, homem multifacetado que encontra muitos meios para expressar o que encerra no seu mundo interior, encontrou no grupo de teatro do Ateneu de Caracas, e particularmente na direção de Carlos Giménez, um veículo para fazer que a poesia se convertesse em fenômeno cênico-musical impactante. Carlos Giménez soube ver no texto a força da palavra que, até hoje relendo-o, nos conduz diretamente à emoção da existência, à angústia do cotidiano, ao amor e ao ódio, ao sofrimento e ao gozo, à liberdade ou à tirania, ao branco e ao negro, à opulência do espírito frente à carência material, à opressão do sistema e às portas que nos convidam a sair sob nossa própria responsabilidade e lucidez. Reencontramos nessa cantata o fio de nossos labirintos interiores e sentimos que tem vigência, que poderia seguir representando-se sempre. Sem dúvida, o mundo mudou muito desde aqueles anos da década de 70, em que todos éramos um pouco errantes como o poeta um pouco autoritário/puritano/com idéias de suicida. Ele estava em Caracas, um brasileiro no país que nos acolhia. Penso que os adolescentes

são errantes mesmo que não deixem seus leitos, seus quartos, suas casas, suas cidades ou seus países. Sempre estaremos habitando esse mundo

imaginário que nos permite sonhar utopias com as quais debatemos e pelas quais muitos de nossos contemporâneos perderam tudo ou quase tudo. Às

vezes até a própria vida. Idealismo e desapego eram a mesma coisa. E o poeta expressa assim:

 

Quando eu for à lua

não levarei relógio

não levarei a Bíblia

nem ressentimentos.

 

          Sua maneira de desnudar a alma aproxima as solidões:

 

Deixou sua casa, sua mãe, sua terra, sua

biblioteca/ seus amigos mas não quer voltar./A

solidão faz-lhe mal, fustiga e chateia./É egoísta,

pobre, tem todos os defeitos.

 

          Fala de si mesmo como se fosse de outrem. Talvez fosse mais fácil para ele tirar a máscara para enfrentar seu verdadeiro ser. Um procedimento de plano duplo para fazer fluir a dualidade de todo humano e chegar a decantar a essência. Uma espécie de autodistanciamento poético, que em vez de distanciar-nos, como pretende Brecht, nos aproxima numa empatia solidária.

 

          Algo de poeta maldito surge de seu verso livre e ao mesmo tempo evoluído, que nos lembra Rimbaud. O feitiço dos matizes de seu lamento e a tensão da linguagem desprendem-se das estrofes:

 

As pessoas o chateiam, os livros o

chateiam, ele mesmo/se chateia./Tem pouco que

oferecer,/ou nada.

 

          O inferno de sua própria identidade está nesse debater-se consigo mesmo, no desencontro com o espaço aberto do universo estranho que o circunda:

 

          Antonio Miranda, nordestino, vivendo em Los Chaguaramos/

precisa de companhia, de proteção, de carinho! Estes versos repetem-se na litania do poema A quem possa ineressar, como um certificado de existência (que é seu grito de socorro) para quem busca uma saída. A solução está imersa no restante das estrofes e canções. A escapatória o conduzirá talvez à solidão total, de onde nascem as asas para voar.

 

Vive num quarto de república, satisfeito

com sua miséria/fingindo ser otimista para salvar-

se da ruína./ Tem alma de viajante cansado/ e

coleciona cartões-postais.

 

          A porta de escape não está na droga (deplorável alienação que a nada conduz), está em imaginar, está na poesia escrita que talvez seja a poesia mesma dessa vida. Seu grito de "Liberdade!" surge das palavras: Eu costumo dizer que não sou um homem de palavra/ que sou um homem de palavras! Está em sonhar o "amor integral", esse que lhe permite transcender, sentir-se no limite, com um gesto mover o universo/ com uma palavra/ qualquer/dar novo curso à História.

 

          Talvez a solução a encontre na lua, de onde promete esquecer seu nome, sua carteira de identidade e o passaporte.

 

Quando eu for à lua/não vou firmar papéis/ não farei testamentos, inventários/nem balanços. Esquecerei em terra firme/

minha conta bancária/ minha agenda/minhas roupas/ e a gramática.

 

          Promete também para seu próprio consolo: Alunizarei sem pressa/

no espaço/como quem chega/para instalar-se.

 

          Prisioneiro das palavras, como Neruda, ele as coleciona, joga com elas, as transpõe e recompõe num caleidoscópio onde se fundem realidade e

ficção, realidade e poesia, corpos, sentimentos e idéias. Descontruindo Por um amor integral, encontramo-nos com fragmentos de um universo fascinante que nos permite despoetizar:

 

Tuas pernas, versos, braços/ rimas, estilizadas/.

Tuas pernas são poesia

Tuas pernas, versos, músculos./palavras,/

não se deve descrevê-las.

Um corpo em que me completo,/poesia.

Teu corpo/ as palavras./ As palavras em teu corpo./

O mundo está cheio de palavras...

Tu consomes pão e consumes palavras.

Democracia./ Liberdade./ Temor./

Felicidade.

 

          O poeta denuncia o mundo cheio de burocratas, técnicos de palavras. E adverte:

 

E apenas uma palavra/somente uma/ tira

a tua coroa/ ou te inflama a garganta.

 

          Seu percurso recorre os caminhos de sempre da poesia, mas com reflexão inesperada e a profundidade de quem viveu descontaminado, sem

estereótipos. Portanto, o amor supremo, aquele de todas as coisas, nos contagia de vida e idealismo:

 

O amor é um caso impossível/ uma equação

sem resultado/ o equilíbrio insustentável/

e o homem ama!/ Porque o amor não ocupa

espaço/ o amor não tem limite/esta além do tempo.

Saber que o amanha não existe/ que hoje

não existe/ que ontem é ilusão...

 

          O poeta nos dá uma dimensão superior do mundo quando exclama:

 

O amor não ama em particular/ mas no

geral/porque o amor esta além do objeto/ mesmo

quando se manifesta no objeto.

 

          Uma projeção suprema que em San Juan de la Cruz encontramos dirigida ao amor místico, em António Miranda se dirige à condição humana e sua redenção ao amor autêntico, aquele que permite reivindicar a vida:

 

Porque o amor que se ama/ é um mínimo

múltiplo comum de todas as coisas/ um horizonte

continuo! e um vir-a-ser perene.

 

          Antonio anda despido pêlos versos (desnudo por los versos!), apesar de sua dor.

 

Porque me cortaram as raízes/ as asas/ me

confinaram em um quadro/ é que grito!

 

          E clama um chamado que até hoje repercute:

 

Meu amor por ti é um amor

comprometido,! traduzido em exigências e duras

penas.

Verbo metálico, brandindo, clamando o

despertar! de tua consciência.

Não te peço amor por mim/ mas pelo

mundo que habitas distraído.

 

          Seu antídoto contra os males do mundo não está em nenhuma droga, está na palavra, no amor supremo, na poesia. Portanto a palavra é altamente significativa e a linguagem ilumina-se ao ponto de que deixa de ser signo para converter-se em substância. O poeta move-se do puro ao impuro. Também está no amor de carne e osso, na sensualidade, ricos tesouros da vida:

 

Viajo teu corpo como um sol/ que doura os

contornos/ suaves de tua juventude, l Nossos

corpos confundindo-se/ fundindo-se na combustão

solar/ o sal de nosso êxtase! suor, areia e gozo/

orgasmo.

 

          Mestre em fantasmagorias, como Rimbaud, revela todos os mistérios de suas vivências, suas deformações e suas grandezas:

 

Tua poesia não fala dei tua poesia éf teu

corpo/um poema inteligível/ mesmo sensível. Teu

corpo é um poema/ completo, indivisível.

Ensaia valores novos/ e destrói todos os

cânones/ é matéria e essencial matéria e energia/

passado como presença.

 

          E aceita esse autodesafio para destruir os cânones quando grita que o demônio foi criado para medir a grandeza de Deus. Quando levanta o índice para assinalar a Deus e justifica sua ausência porque Ele não pode tornar perfeitas/ as criaturas humanas/ e se afastou delas/ tomado de vergonha.  Quando reclama que Jesus Cristo estava louco. Louco porque

 

Subiu montanhas/atravessou

desertos/ corações/fez milagres/ revoluções/ inventou

a bomba atômica! (...) fez proclamações marxistas/

e inaugurou o parto sem dor.

 

          Também responsabílizou-o pelas minissaias, pelas cabeleiras, pelas pílulas anticoncepcionais. Afinal, Jesus Cristo estava louco.

 

Denuncia a ferocidade humana em favor de um mundo que se crê feliz.

 

Teu Deus é o único do Universo./

Tua família é a única que presta./ Tua

pátria é a melhor do planeta./ Teu time de futebol

tem que ser o campeão./ Teu candidato precisa ganhar!

 

          A vigência de seu recado poético emana do sarcasmo, do contraste de emoções, do clima de verdade que permeiam as vozes interiores que habitam e acossam o escritor. Tu país está feliz pode ser sentido, ouvido; falado ou cantado, tem uma carga de ironia que se manteve intacta ao longo do tempo. Tu país está feliz! Tu país está feliz! Tu país está feliz... podemos dizer até o infinito, mas não, dizemos até hoje, até aqui e agora. Quando pensamos, quando queremos pensar, podemos somar-nos ao coro e repetir numa espécie de  contrição:

 

Duas forças te pressionam/dois mundos

te dividem/ duas vozes te encurralam/ e tu te pi

negas/tu te omites/os problemas deste mundo não são teus!

Tu não protestas ou não podes./ As guerras

longe daqui/ nem se ouvem os tiros./ Tu país está feliz.

 

          A divisão do mundo de hoje não se afigura no mapa. Caíram-se as barricadas e os muros para dar lugar a um novo disfarce. Há trinta anos atrás, António Miranda sinalizou de uma maneira que podemos repetir hoje e a palavra reitera a situação nefanda que se prolonga em sofrimento e inconsciência:

 

Tu não protestas ou não podes./...

Alimentação e alienação/- uma diferença de letras.

Tu te consideras impotente diante dos destinos do

mundo./Acreditas no fracasso das ideologias/tiras

do ostracismo/velhas teorias sobre a fatalidade do

clima e a nossa falta de cultura./...

 

Reina a mais completa paz em todo o país...

 

          Antonio Miranda assume o paradoxo de ser Deus e Homem, Demônio e Homem, enfim. Poeta. Hoje, depois de todos esses anos, contínua tendo fé na vida e na condição humana. É feliz (ao menos aparenta) dando aulas de pós-graduação na universidade.

 

          Escreve poemas significativos, tremendamente significativos. Seu livro Brasil Brasis desvela sua veia irônica, quase esperpêntica, que arranca da alma seu também tremendo amor pelo Brasil:

 

"O Brasil que se mostra não é/ o que é, mesmo que verdadeiro./

Por inteiro. Reflexo do reverso  em verso derradeiro". (Idem, p. 23) ..

 

Ou quando evoca o hino: "Oh Pátria amada, idolatrada/salve, salve!/ O Brasil é um ponto de exclamação,/ extrema-unçao, salve-se quem puder!" (idem, p. 41). Hoje, o poeta adquiriu a capacidade de ver o mundo em num grão de areia,  e como os gregos, usa o paradoxo do infinitamente pequeno e do inifïnitamente grande. Em seus versos cabe a imensidade e o trivial:

 

"As aves que aqui gorgeiam, as ervas que aqui grassam/ vicejam,/

as rimas que aqui florescem/ e escurecem,/

os retirantes que deambulam,/ as águas que se precipitam,/

os fetos e os desafetos./o que é sub-reptício./o que é implícito,

/o que podia ser/mas não é./ Cafuné. Pois é." (Idem, p. 29)

 

          Antonio é um amigo entranhado que esculpe as formas em madeira, cultiva bromélias e as pegadas dos amigos no jardim de sua casa, com o mesmo amor que entrega o seu conhecimento. Sinto-me privilegiada de ter assistido ao seu triunfo como poeta no cenário distante, no velho Ateneo de Caracas, onde presenciamos tantas estréias inesquecíveis, naqueles anos de buscas. Pergunto-me por que aqui no Brasil nunca o representaram?

Já temos as mochilas prontas para uma nova viagem. Antonio... Teu país seria feliz.

 

 

 

 

 

 
 
 
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