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Capa por Inacio da Glória
Thesaurus Editora
30 ANOS DE
“A QUADRATURA DO Ó OU A MARAVILHOSA ESTÓRIA
DO FANZOCA QUE IDOLATRAVA EMILINHA BORBA”
Márcio Almeida*
Vou ao mercado das palavras como para salvar um diamante na hora do abismo. Mércio Silveira/Virgínia, personagem do livro
Lançado em 1979 pela Thesaurus Editora, A quadratura do ó – ou a maravilhosa estória do fanzoca que idolatrava Emilinha Borba, de Antonio Miranda, mantém, com certo pioneirismo, a questão do homossexualismo em nível de discussão sobre tema emblemático, polêmico, provocador de preconceitos e, hoje, de ações contundentes no país, pela liberdade da profissão de fé sexual dos segmentos por séculos marginalizados.
Escrito no primeiro qüinqüênio da década de 70, o romance insere-se entre publicações como “Lampião das esquinas”, jornal gay que lançou, entre outros, Aguinaldo Silva (“Primeira Carta aos andróginos”, 1975), João Silvério Trevisan (“Devassos no paraíso”),; a “Ópera do malandro”, de Chico Buarque de Hollanda, consagradora do travesti Geni; “Falo”, do potiguar Paulo Augusto, que imortalizou Madame Satã; Darci Penteado com “A meta” (1976), “Aqueles dois”, de Caio Fernando Abreu e muitos, muitos outros que assumiram tratar publicamente do “amor que não ousa dizer o nome” (O. Wilde).
A pretexto de narrar o “mal-estar feliz” de um fã da cantora de auditório Emilinha Borba, Antonio Miranda materializa o personagem Mércio Silveira, aliás Virgínia, que, a exemplo de seus êmulos de vida como travesti, incorpora o ambiente bas-fond do Rio de Janeiro dos anos 50. Época em que o homossexualismo era ainda – e muito – velado, marginalizado e tido até como um incômodo social.
Em meio à intolerância, a hipocrisia e os desafios permanentes à sobrevivência Mércio emerge da pobreza e se impõe no metiê competitivo de uma arca de noé com inteligência, sensibilidade, um poderoso jogo de cintura que funde dor e alegria, humilhação e submissão, perdas e danos, traições e princípios de valor a toda prova, tornando-se referência do show da vida na cidade maravilhosa também por causa de sua cota gay assumida no sentido bairros/centro/pontos de atração turística.
O Rio é então a política do bombástico Carlos Lacerda, o Brasil é getulista, o crime de Sacopã, a Revista do Rádio, o programa César de Alencar, os shows na Praça do Méier, uma das mais acirradas competititividade da história cultural brasileira entre Emilinha e Marlene, dos carnavais das marchinhas ecoadas em coro por todo o país, a chegada da televisão pondo fim à era do rádio, a influência norte-americana através do cinema com Elvis Presley, James Dean, Rock Hudson, Natalia Wood, entre muitos outros “galãs”, do rebolado cobiçado de Virgínia Lane e Nélia Paula em capas de long-players de Bob Fleming, aliás, Moacir Silva, da eterna miss Brasil Marta Rocha, de Wilza Carla, das fantasias luxuosas de Clóvis Bornay, do concretismo acontecendo no suplemento do Jornal do Brasil, dos “milagres” de Zé Arigó, do sucesso internacional de Carmen Miranda, da trama onírica de Brasília por JK, do Copacabana Palace...
Antonio Miranda narra com realismo e elegância esse contexto, com ênfase no destino difícil e épico dos homossexuais, mesclando seus dilemas, perplexidades, sofreres, a usura de seus corpo e mentes de amantes do fugaz, do desconhecido, da beleza, do vigoroso, imputado de culpa – “uma mitologia de consumo silencioso, reservado, exclusivo” (p.24).
O autor relata situações em que os homossexuais focados refletem sobre si mesmos, sua condição de vida, o jogo periclitante com o prazer, as artimanhas na relação amorosa e sexual com o outro, a guerra psicológica e atávica com a família, as agruras da rejeição social, no mundo politicamente correto, as vicissitudes na busca de trabalho, a exposição crônica à ação policial e à violência de toda sorte de seres “humanos.”
Antonio Miranda traz à luz o fato de o emblema Mércio/Virgínia ser uma realidade que não apenas (sobre)vive ao martírio do prazer, como pensa e manifesta sua filosofia existencial (à época sob os eflúvios de Sartre e Russell), aquilo que especifica a vida mesma de quem assume a conditio e as conseqüências da trieb freudiana: ser homem, mulher e “outro-a”, ao mesmo tempo é, antes de tudo, um conflito pulsionado pelo desejo.
“Se não fossem as bichas as coitadas das mulheres andariam mal vestidas, mal pintadas, mal penteadas, um lixo” (p. 33). Quem há de negar tal veracidade? “Bicha também pensa, não é mesmo?” (p.45) – filosofa Wilza Carla ante o significado, para a época, do Baile dos Enxutos, destinado, como tantos outros, “para fazer catarse”.
O fato é que Antonio Miranda cria na personagem Wilza Carla, já “borboleta noturna” tarimbada, um duto de reflexão sobre a vida homossexual/travesti. Um excerto esclarecedor dessa intenção:
No fundo, lá no fundo de cada um, ninguém acredita em nada, pensa com os outros, deixa-se convencer por conformismo ou comodismo, medo de sair do rebanho. (...) Errados são os que estão buscando uma realidade que ninguém é capaz de identificar, de divisar, que ninguém percebe, que ninguém entende. (...) O nosso patriotismo acaba mesmo é em letra de samba-enredo. Para mim a realidade é o Baile dos Enxutos. (...) Eu às vezes digo não para acreditar que eu tenho livre-arbítrio, que guardo a minha individualidade mas reconheço que ela é incômoda, não é aconselhável. (...) E é isso que eu faço: bato o pé, sapateio, xingo, divirto, divirto-me. (...) O último moralista desse país é Nelson Rodrigues, mostrando aos outros como eles não devem comportar-se. (...) No dia em que todos os homens decidirem andar com sapatos altos, bolsas a tiracolo e cabelos cacheados isso vai ser perfeitamente lícito, lúcido, lógico, todo mundo vai se sentir absolutamente cômodo, vai ser verdadeiramente moral. (...)(p.46-7).
Para em seguida lascar uma “tirada” antológica: “O travesti é o traje típico nacional. Ele é como qualquer outro: ou a gente o usa para enganar os outros ou os outros o usam para enganar a si mesmos” (p.47). E arrebata: “O mundo precisa de um engano gentil, carinhoso – cafona cafuné – de dengo e muxoxo, está disposto a pagar aos milhões na busca desesperada da nossa Pedra Filosofal, nos pés do Corcovado. A ilusão é nossa, ela é construtiva, ela é a nossa ideologia. Ser cafona vai ser um privilégio, vai virar moda, símbolo, questão de ponto de vista e não de gosto, vamos deixar a cultura de elite para a elite, já que o povo é soberano.”
Homossexual pensar, melhor, pensar por conta própria, uma vez que também todos nós “vamos viver de slogans motivadores” (p.48) é um diferencial do romance de Antonio Miranda, atualíssimo, recomendável de uma reedição: “Será feliz o homem que envelhece ao lado da sua mulher? Pela manhã, a boca ainda sem escovar, o suor da intimidade, as digitais nos seios, no ventre e nas coxas, o membro flácido, a cama flácida, o sonho flácido” (p.49); “Falando de mulher para mulher, não são mais interessantes as roseiras da Duquesa de Windsor, o vestido do casamento de Grace Kelly ou a descrição de uma cena erótica vivida pelas amigas?”(p.54-5).
É perfeita a descrição noir do autor para o cenário habitué dos homossexuais/travestis: “Uma luz ilumina o palco, as cortinas estão sujas mas ninguém vê, a alma está encardida mas ninguém percebe, a pintura do rosto foi feita às pressas. (...) Dizem que beleza não põe mesa mas leva à cama, que é o que importa. (...) Se eu fosse você, Virgínia – você que é artista – eu caprichava na pintura, entrava no palco como uma deusa, como a divina, entrava para abafar. (...) Como um canibal, antropófago, devorando corpo, engolindo humilhações, engolindo o próprio corpo, o próprio vômito. Mércio, o cantor-sensação. Mércio, a pérola carioca” (p.51).
A dura vida homossexual é descrita com imprescindível rudeza, sem retoque de coiffeur : “Trocou a noite pelo dia. De uma pensão saiu fugido porque não tinha com que pagar, da outra porque era familiar, havia que preservar a moral. Da terceira porque o Mauro Gostosão armou um escândalo. Na quarta, roubaram-lhe o crucifixo da avó, que era de prata. A noite descendo como uma rede intransponível, uma malha blindada, o tempo corroendo os sentimentos, apagando as melhores recordações. Jurou mil vezes deixar aquela vida, prometeu a São Jorge dedicar-se à gravata e à máquina de escrever, até que chegou-lhe a glória: uma figuração num filme da velha Atlântida, a foto nos últimos números da revista Cinelândia, ao lado de Ângela Maria” (p.53).
A quadratura do ó... é um livro para ser lido sem preconceitos, incluído entre os que registram com dignidade o homossexualismo brasileiro, pois essa condição hoje cada vez mais respeitada em todo o mundo tem uma voz uníssona para se revelar na faina dos dias, tal como Mércio expõe no seu “Determinismo” (p.78): “assim é – assim tinha que ser.”
Oliveira, 12 de janeiro de 2008.
*Marcio Almeida, poeta, crítico. É formado em Letras, com curso de Especialização em Ciências da Religião, mestre em Literatura.
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