HORIZONTE CERRADO:
OU O CAMINHO PARA O NADA
Elga Pérez-Laborde
Professora de Teoria Literária Universidade de Brasília
Brasília movimentou em seus quarenta e dois anos todos os mecanismos literários apologéticos da poesia épica, lírica, do ensaio histórico, místico, arquitetônico e outros ervas que centralizam sua atenção nas considerações atípicas de uma urbe que é a única de desenho contemporâneo considerada patrimônio da humanidade. O nascimento planificado da cidade motivou os poetas e escritores, estudos e tratados sobre uma aventura arquitetônica e artística genial e ao mesmo tempo desconcertante. Faltava apenas uma novela que desse perspectiva a tudo isso no contexto do universo interior de personagens que, não obstante todas a maravilhas que os rodeiam, não encontram senão caminhos sem direção para suas vidas.
Antonio Miranda com a publicação da novela Horizonte Cerrado (2002, edição da Tesaurus com o patrocínio do Fundo de Amparo à Cultura do GDF) incursiona em outro âmbito, sua novidade literária revela outra cara de Brasília, a da periferia, a dos seres que deambulam sem destino preciso, sem expectativas maiores além de consumir o tempo, num círculo sem saída, subjugados por todas as opressões da desigualdade. O título da obra apela, numa contraditória e dupla significação e sentido, o emaranhado vegetal do Cerrado e, ao mesmo tempo, o encerramento do destino dos que vieram em sua busca peregrina, ou o vegetativo acaso dos sobreviventes, em busca de algo que nunca chega. Trata-se de uma novela breve mas densa que simboliza a perspectiva dessa parte escura da nação, de um povo, cujo discurso não se pronuncia nem se escreve.
Temos que ler no metatexto, além das linhas impressas, para descobrir as ressonâncias ocultas de uma realidade que não tem discurso próprio, para entrar nesse discurso invisível a que se refere Michel Foucault, que não consegue fazer-se história nem consciência. Antonio Miranda apresenta-nos personagens com sua realidade interior e suas histórias de vida numa linguagem intranscendente o que equivale dizer praticamente mudos, sem linguagem própria. Estão aí, no papel, estruturando sua história pessoal sem fala, ou com a mínima possível, para oferecer-nos uma sorte de desconcertos e frustrações. Representam o fruto de um sistema que os manipula, ilegitima e os condena a desaparecer na desidentidade social, política, econômica e cultural. No entanto, esse deambular do autor e do leitor na subjetividade dos sujeitos protagônicos que constituem a trama principal de Horizonte Cerrado, equivale a uma incursão no universo dolorosamente palpável do Terceiro Mundo.
Nesse sentido a obra de Miranda é universal. Ao mesmo tempo lemos com nervo, com tensão. Tem a virtude de estimular-nos desde a primeira linha até ao final. As vivências destes personagens simbolizam a história de muitos indivíduos que habitam o espaço latino-americano. Anti-heróis de hoje, que nos incitam a refletir sobre as culturas oprimidas de sempre de nossa história. Nesta novela nada é óbvio e sua leitura pode-nos conduzir à reflexão de que tudo está implícito nesse mundo cerrado que o autor maneja com fluidez e estratégia crítica. Os personagens configuram o perfil das vozes periféricas. A diretriz de suas vidas está predeterminada, polarizada por forças sociais em pugna. Com eles, entramos no mundo das massas, dos seres sem rosto, engolidos pela corrente que conduz na direção do nada. Pelo menos até agora. Talvez Horizonte Cerrado transforme-se hoje numa referência do passado que começa a estruturar-se neste momento histórico em que o Brasil luta para deter a marginalização ainda crescente. Que outro sentido pode ter a novela de Antonio Miranda agora ou no futuro? Estas considerações surgem de um enfoque exterior, observando o entorno em que os personagens se movem. Não é uma novela filosófica nem psicológica.
O autor adverte-nos em seu prefácio que só pretendia contar uma história breve e ligeira, ainda que ao mesmo tempo de forma densa e intrincada mas também fluida, entretida, exemplar. "Exemplar no sentido de demonstração, das convicções do Professor Leocádio, um dos personagens do livro. Ele defende a teoria da gratuidade absoluta das relações humanas, sujeitas a toda sorte de encontros fortuitos, ao sabor das oportunidades e seus desdobramentos imprevisíveis, sem qualquer lógica ou relação com destino ou mapas astrológicos". Isso é apenas meia verdade. Só que esses desdobramentos ultrapassam as intenções do autor e dos personagens, porque todos eles não são simplesmente fruto do destino. Parece-nos, mais profundamente, que dependem das forças cegas pre-determinadas pela corrente que conduz os fios das superestruturas do poder. Quando identificamos nesses personagens cujas vidas são, no dizer de Antonio Miranda, absolutamente banais, intranscendentes, mímimas, mas ao mesmo tempo - econtraditoriamente - tão cheias de vitalidade, de crenças, de códigos, de normas, pensamos nos personagens de Anton Chekov e nos perguntamos ; existem vidas banais por mínimas que nos pareçam? A grandeza radica justamente nessa essencial maneira de existir apesar de tudo, com suas turbulências internas, suas mediocridades e incapacidades e, ao mesmo tempo - como reflexiona o escritor - são "pessoas que se levam muito a sério, dando-se uma importância que não têm e que nunca terão - sejam ricos ou pobres, cultos ou ignorantes. Sujeitos a desenlaces patéticos e até mesmo absurdos em sua inconseqüente humanidade - opinião do personagem -, isto é, um mundo em que tudo é possível, onde nada é impossível. Até porque só o tudo é possível. Ou tudo é nada?" A cidade é nova mas a história já é velha e, infelizmente, parece perpetuar-se. De qualquer forma, a novela fica enriquecida com esta obra do escritor brasiliense Antonio Miranda. Trata-se de um escritor, poeta e dramaturgo com uma trajetória importante, com vários títulos publicados, alguns levados ao teatro, e vinculados com lucidez criativa à cultura latino-americana. |