Reflexões Paratextuais
Por Elga Pérez-Laborde
Professora de Teoria Literária
Universidade de Brasília
O próprio autor de Perversos -, em suas reflexões metatextuais, faz referência ao caráter desta obra que prefiro identificar como antipoemas. Assume que “toda poesia é impura, contaminada, e instaura-se no caos do qual não se pretende libertar”. O poeta admite-se como um oxímoro, e como tal, mantém viva sua constante irreverência jogando com as contradições. A mesma irreverência dos inícios, a de sua adolescência, a de Tu país está feliz, que fez vibrar os jovens das décadas da rebeldia. Conserva viva a mesma chama dos poetas iracundos, o mesmo humor negro, o sarcasmo que parece ser a maneira que tem de seguir enfrentando o mundo e a vida com uma postura de maldito que joga com as formas, as figuras e as palavras.
Esperpentiza a arquitetura textual dos modernistas com poemas grávidos para a esquerda e para a direita, contraditórios na estrutura e no conteúdo, num versilibrismo de linguagem maior e menor, às vezes chocante, às vezes conciliador, barroco, rabelaisiano e além dos seus limites, fazendo da impureza sua meta poética. Como um oxímoro que é, Antonio Miranda apresenta-nos o desafio de seguir lendo cada verso “perverso”, apesar de qualquer resistência. A força de sua palavra nos puxa de uma linha a outra, de um verso a outro verso, de uma página a outra, e sua inocente perversidade nos conduz hoje, do céu ao inferno, do grotesco ao sublime, com uma maturidade do poeta reciclado pela vida e pela aventura verbal. Não em vão está comemorando cinqüenta anos de poesia.
Lendo os “per-versos” surgem algumas perguntas: quais são os limites da poesia? Ou ainda, acaso a poesia tem limites? É suficiente chamá-la de antipoesia? A poesia de Miranda pode produzir, às vezes, constrangimento numa primeira reação do leitor, ou assombro ou perplexidade, ou também riso. De qualquer forma trata-se de uma linguagem racional e poética, nervosa e inesperada, disposta para o anedotário e as vivências de um poeta que se confessa solitário, mas ao mesmo tempo solidário. Uma linguagem que se torna torrencial acumulação de palavras e conceitos sagrados e profanos para expressar uma brasilidade que sabe das iras e demônios, dos sonhos e amores, das frustrações e carências do ser humano. Nisso torna-se universal.
A desconstrução da linguagem e das estruturas modernistas conjuga-se no desencontro das estruturas convencionais inclusive das mentais de todo o establishment literário, social e político. Diria-se que Miranda dos “perversos” gosta de escandalizar brincando; para ele construir é destruir à maneira de Whitman ou como o Barbudo democrata.../ desprezando regras morais. Escreve, projetando seu eu no espelho dessa verdade que permite a poesia: um eu abjeto, incestuoso, narcisista, imoral diante da Morte, que celebra a vida em todas as suas fases e clama pela sua parte impura e suas limitações, tecendo o canto do mal, talvez num ato de exorcismo para sair da escuridão, ou como diz, inscrever um poema/ no coração da América/ e na consciência do mundo/ um poema sujo... Concordamos com o poeta que se pretende antipoeta: o poema sujo pode ser, como uma vacina da alma, sem dúvida, o mais limpo de todos.
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