GRITO INTERROMPIDO
poemas de Antonio Miranda
e fotos de Robson Corrêa de Araújo,
é o primeiro título das Edições Fresta, dedicada a livros de arte em edições reduzidíssimas. Formato 12X12 cm, papel couchê 150 g, capa dura costurada, fotos em cores, exemplares numerados e assinados pelos autores. Apenas 50 exemplares, para colecionadores. Layout gráfico de Nelson Guimarães.
Nota: como não está prevista uma segunda edição da obra, estamos disponibilizando uma versão como e-book com os textos e fotos.
E-BOOK:
Visite e passe as páginas clicando duas vezes no canto superior esquerdo das páginas:
https://issuu.com/antoniomiranda/docs/grito_interrompido
Extraído de: DIAS JUNIOR, Valter Gomes. A poesia de Antonio Miranda e suas intersemioses. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Pós-graduação em Letras, 2014. 268 p. Tese de doutorado defendida com Louvor.
Indagamos Elga Pérez-Laborde por correio eletrônico, em 21 de setembro de 2013, sobre o estilo dessa obra, que consideramos bastante demarcada pela antipoesia e pelo esperpento, pois possui uma linguagem voltada para o quotidiano, uma postura transgressora, irônica, com intensa harmonia entre os contrários. A estudiosa concordando com nossas críticas, respondeu-nos:
Penso que sim continua sendo poesia esperpêntica ou antipoesia, pelas grandes contradições que há em grande parte dos versos, entre a linguagem procaz, irreverente, a desconstrução de palavras, ideias, e os sonhos, as figuras que evocam no meio da devastação, entre a miséria e a felicidade apesar do escancaro constante, onde transitam as fezes e as andorinhas, os mendigos urinando nos poemas etc. O contexto de oxímoro se dá na medida em que a linguagem joga com elementos opostos apontando a uma imagem em que se harmonizam para comunicar um estado de alma do poeta ou antipoeta. Espero responder algo de tua pergunta, mas depende da interpretação leitora. Essa é a minha leitura.
Ante o exposto, procuraremos contextualizar essas asserções no estudo detalhado dos poemas deste livro e é importante salientarmos que a natureza intersígnica das composições literárias desta obra é mais intensificada devido ao fato de cada poema vir associado a uma fotografia de uma cidade satélite de Brasília — Cantodangolânida. Essas imagens são de autoria de Robson Corrêa de Araújo, que além de fotógrafo é também poeta que assiste em Brasília e possui um vasto interesse pela semiótica. Seu último livro intitula-se Y Semiótico (2006). Como os poemas de Antonio Miranda em Grito Interrompido (2007) estão associados também a uma imagem, nossas análises detêm-se a ambos. Para discorrermos nossas considerações, selecionamos os seguintes textos: PAISAGEM CARCORMIDA, BATERIAS, TELOS, COM A SEGURANÇA e GRITO INTERROMPIDO.
PAISAGEM CARCOMIDA
pregos enguiçados
aragem abrindo janelas
e os retratos na
os pratos depois
os lustres dependur
as fissur
nódoas
paixões sem dir
qudros, posts, relâmpagos!!!
(MIRANDA, 2007 b, p. 7)
Figura 8 (ARAUJO, 2007b, p. 6)
Verificamos que a mensagem do texto dialoga com a imagem. Esta não possui uma legenda que a explique ou defina-a, o que leva a ser propriamente um ícone imagético e não um símbolo. Vemos que a gravura registra a paisagem carcomida pontuada no poema. Vestígios de lixo espalhados pela rua onde se convive ao mesmo tempo seres vivos — o cachorro ao centro, um indivíduo que provavelmente se encontra no interior do veículo para conduzir o caminhão. O azul do alto céu se opõe às cores opacas, escuras e o branco nodoado. A foto é esperpenticamente desconcertante pelo fato de vida e destroços confluírem entre si. A sujeira jogada pelo chão aponta a deformação que designa uma reflexão esperpêntica sobre o espaço.
A fotografia dialoga com o poema pelo fato de ele erigir uma simbolicidade que proporciona todo um desconcerto no cenário. A escritura do poema está interligada às características da antipoesia, como a oralidade que se materializa através dos versos sem ausência de pontuação, a desconstrução das palavras, vocábulos escritos da maneira como sé pronunciado — posts. Além disso, na escrita, a falta de iniciais maiúsculas vincula-se também a uma ruptura com o tradicional. Percebamos que, de acordo com o senso comum, é dado ao signo paisagem toda simbologia aprazível, que preenche o imaginário de um observador com belezas. Daí notarmos a presença de um acoplamento por equivalentes em oposição entre este termo e o signo carcomida. Os pregos enguiçados e a aragem que é a brisa que abre as janelas opõem-se à dureza e à falta de funcionamento do primeiro e à suavidade do segundo e ambos convivem harmonicamente, esperpenticamente, no mesmo ambiente.
A paranomásia corporificada na homofonia das rimas entre retratos e pratos aproximam objetos que, no mesmo espaço, não estão definidamente situados, por causa da preposição que sucede o primeiro signo e o advérbio posterior ao segundo. Isso intensifica a ideia de algo que fora carcomido ao ponto de estes objetos não estarem diretamente sinalizados num local específico. Daí serem compreensíveis a fissur(as) apontadas no texto e estas se materializam inclusive no aspecto formal da escrita. Conteúdo e forma unem-se através dessa inusitada ocorrência, gerando o isomorfismo e registrando o que deveras está fissurado, como “paixões se dir”, “qudros, posts, relâmpagos!!!”. Este último signo possui equivalência com o vocábulo fissura, uma vez que ele rompe com o silêncio.
Este fenômeno posiciona-se como um sinsigno pelo fato de singularizar um momento com sua inesperada ocorrência. Daí o relâmpago ser também semanticamente a fissura de um instante linear e padronizado, como as nódoas, que estão mencionadas no poema, fendem com a unidade da cor. Os sinais de exclamação repetidos três vezes enfatizam a surpresa gerada através de todas essas rupturas sígnicas e, dessa maneira, o desconcerto esperpêntico se faz presente. Passemos à leira do próximo antipoema para captarmos suas características;
BATERIAS descarregadas
pneus pneus pneus
alimentos putref
cacos dejetos
e a criança
abando
nada
(MIRANDA, 2007b, P. 9)
FIGURA 9 – (ARAUJO, 2007b, p. 8)
Interessantemente, muitos títulos dos poemas deste livro partem do corpo do texto. Este antipoema é nesse estilo. Os dois iniciais portam-se como iconicidades metonímicas de veículos automotivos. O primeiro inclusive reporta-se a alguns com defeito devido aos signos “Baterias descarregadas”. A anáfora do vocábulo pneus no plural sugere uma quantidade significativa da presença de automóveis, os quais, abdutivamente, aproximano-se dos problemas mecânicos das baterias podem também estar com defeito. São partes de um todo que sugerem um desconcerto e que recebe uma intensificação da simbolicidade ulterior a essem recém-referenciados signos: “alimentos putref”, “cacos dejetos”, “e criança abando”, “nada”. Esse estado de decomposição, putrefação, dejetos estilhaçados vivem no mesmo espaço com um ser humano necessitado de atenção — uma criança — porém este se encontra abandonado. Essa união entre os objetos danificados, a podridão dos alimentos, os dejetos, isto é, partes de um todo assaz próximas de um sujeito desprezado geram a condição esperpêntica do texto. Vida e esfacelamento unem-se erigindo o contexto do esperpento.
Faz-se mister observarmos que este antipoema vai ampliando as imagens desconcertantes, pois sai de baterias a uma criança, proporcionando uma gradação crescente entre os símbolos. E quão curioso é este efeito, porque vai de um polo pluralizado a outro singularizado e definido. O signo criança, em oposição aos demais, é o único substantivo sem o morfema de plural e que vem acrescido de um artigo definido. Este detalhe nos leva a entender que não é um ser qualquer. Trata-se de alguém com sua individualidade bem percebida e interpretada pelo observador. Principalmente, por contradizer com um ser que precisa de cuidados, mas isso lhe foi negado. A maneira como o termo “abando” “nada” foi redigido desperta a capacidade analítica do leitor. Ele teve suas duas últimas sílabas separadas das três que as precedem, fazendo com que um rema, que significa uma palavra na terminologia peirceana que fala por si mesma, seja convertido em outro com um aspecto formal inusitado, porque a desconstrução sígnica serviu para edificar o vocábulo nada. Esta condição é a característica que uma pessoa obtém de um indivíduo ao ser abandonado. Alguém somente é excluído da vida de outro ser caso seja considerado dessa forma: um nada.
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