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A CATIVA E O RESSURRECTO

 

por ANTONIO MIRANDA *

 

 

O seu tio havia sido desenterrado vivo depois de dez anos de escuridão. Emergira da podridão do esquife com os olhos arregalados, com as pálpebras de câimbra e paralisia, para um ofuscamento de pavor, dolorido e frêmito, invadido pela luz impiedosa e punçante a ferir-lhe as córneas ressuscitadas. De pé, sobre os escombros. A gente assustada, em gritos de susto e desconcerto.

 

No âmago da terra permanecera todos aqueles anos de imobilidade, de quase-silêncio, não fossem os tremores repentinos e quase imperceptíveis que a sua mente adormecida devia perceber sem interpretar, num torpor de abandono absoluto.

 

A menina o conhecia de fotos, no álbum de família na sala de visitas, e andava apaixonada por ele no deserto de seu desasistimento, quase sempre recolhida ao quarto de suas angústias. Enquanto as irmãs saíam constantemente à rua para visitar as tias e as primas, para irem à missa e ao rio, ela era conservada como prisioneira nos limites da casa-prisão, amargando sua desventura, sem resposta alguma ou explicação para aquele castigo eterno.

 

O tio estava intacto sob uma cobertura de pó em camadas de fina tessitura desmanchando-se pela ascensão torpe e dolorida de seu corpo, levado por uma aragem súbita, um vento morno e sem direção exata que perpassava árvores defuntas e sepulturas caiadas e frias. A visita da menina ao cemitério fora uma das suas raras aparições fora dos muros de seu cárcere familiar. Estava no enterro da avó materna, uma velha só ossos e rancores, que nunca a fitara em toda a sua vida, que a evitara desde o aziago dia de seu nascimento, que jamais a tratara como neta, nem mesmo quando esteve à morte vítima de uma pneumonia. Nem um olhar de compaixão sequer, nem de alegria quando sobreviveu à custa de rezas e beberagens, não obstante o avô ser o farmacêutico da freguesia de Floriano. Amava aquele tio em fotografias que animavam uma figura com bigodes.

 

As irmãs haviam sido poupadas daquela cerimônia fúnebre, ficaram em casa entretidas pela velha empregada, inocentes daquela situação macabra de sepultamento da avó e de ressurreição surpreendente do tio. Era o tio de seus sonhos de enterrada viva. Ela nunca entendera a razão de seu suplício, havia um pacto de silêncio em seu entorno, não sabia por que crime respondia naquele desprezo e abandono, crime que vinha desde o dia de seu nascimento. Amargava a indiferença desde os primeiros passos, desde as primeiras impressões do mundo. Era a enjeitada.

 

Estava agora diante da morte e da ressurreição, dois momentos alternados da existência humana, embora só conhecesse uma espécie de morte confinada e desolada. O tio saía de seu embalsamamento pela violação do jazigo da família, para dar espaço à octogenária falecida. Foi um espanto geral quando se levantou-se do túmulo aquele vulto coberto de pó, agora com a palidez das paragens desconhecidas da morte, cercado de flores ainda perfumadas. Os coveiros soltaram gritos de pavor e desfalecimento, protegendo do desmaio nas paredes frias da cova reaberta, deixando a laje resvalar para o fundo do buraco. Algumas pessoas afastavam-se apavoradas pela aparição da morte, daquele cheiro súbito de coisa parada no tempo, enquanto a menina arregalava os olhos escuros fascinada, verdadeiramente enfeitiçada pela surpresa. Estava diante do tio que amava desde as primeiras e verdadeiras horas de sua vida, e sentia a sensação de um despertar da própria vida confinada e erma, da intimidade daquelas fotos do álbum de família que ela visitava com freqüência. Sentia o rompimento de seu ostracismo. Não se lembrava dele nem de seu enterro pois acontecera quando ainda devia ser inconsciente e mal formada, mas sentira a sua falta sempre, percebeu logo o reconhecimento de sua existência como uma espécie de redenção, como se convivesse com ele há muito tempo, desde sempre e sempre, como o avivamento de um ser de seu convívio.

 

Os familiares e convidados, depois do susto, animados pela voz ainda trêmula do sacerdote, reaproximaram-se, estupefatos. Admiravam a tranqüilidade da menina que dava a mão para o tio que saíra das profundezas de outra vida, ajudando-o a reintegrar-se no mundo dos vivos, como se renascesse do outro lado da própria existência, do próprio inferno. O morto olhava reconhecendo. A irmã estava bem mais velha, o irmão Raimundo já não era mais criança e mostrava marcas da erosão daquele clima de quenturas sufocantes na sua face queimada, sentiu a falta do irmão mais velho, as irmãs revelavam a mesma placidez de ovelhas amestradas e havia rostos desconhecidos ou irreconhecíveis. O mais espantoso é que o retorno à vida depois do congelamento das entranhas da terra em pouco ou nada havia deteriorado a sua integridade e o seu semblante de meia idade, nem crescido os seus cabelos nem mesmo as pontas de seu bigode, nem suas unhas encardidas, fato logo atribuído à presença regeneradora das flores e ao clima seco da região, pois já se sabia da existência em solo piauiense de fósseis e vestígios de homens pré-históricos e de inscrições na Serra da Capivara.

 

Na cidade corria a notícia de outros indivíduos renascidos para o mundo nas mesmas condições, saídos de urnas funerárias indígenas redescobertas, de antigos sambaquis desenterrados, gente que fora resgatada da morte pelas mãos de curandeiros indígenas ou de simples sertanejos capinando a terra. Bastava olhar para o rosto de caboclos que freqüentavam as tendas do porto de Floriano ou que traziam seus produtos à feira para ver que eles eram a continuidade de povos autóctones que voltavam à vida, predestinados que estavam à ressurreição e à continuidade de uma raça nativa.

 

A tumba da família Teixeira estava justamente nas ruínas de um daqueles cemitérios sagrados, abandonado há tempos e reaproveitado, razão da preservação do corpo do tio solteirão, conhecido pelo nome de Eloi Teixeira. Ganhou logo o apelido de Já Morreu, condenado a ouvi-lo das crianças que corriam curiosas para vê-lo e tocá-lo, e das mulheres que o apontavam das janelas mais próximas por onde passava com o seu terno branco de defunto.

 

* * *

 

O Piauí sempre foi – e todo mundo sabia – um pedaço do fim do mundo antediluviano, por onde vagavam os animais da mais remota antiguidade da terra, pois os vestígios estão por toda parte e do chão arcaico emanam forças vitais capazes da ressurreição das espécies. Havia relatos de outros casos em Oeiras e em Picos. Um tatu gigantesco havia saído das entranhas da terra, redivivo, a caminhar na direção do sol nascente até desaparecer nas brenhas mais inóspitas e inacessíveis do sertão. Havia pássaros descomunais, com bico de carcará e asas de morcegos que saíam das cavernas para atacar os rebanhos de gado no pasto aberto e até peixes alados que vinham do delta do Parnaíba, na direção das águas enterradas do Gurguéia, para a derradeira morte, desde tempos imemoriais. Os ossos daqueles peixes ajudaram, durante séculos de decomposição, a abonar a terra cáustica mas fértil da região, ocultando seu mar interior, com medo de um dia aquelas águas fossem descobertas e aquelas terras profanadas pelos colonizadores. Se isso viesse um dia a acontecer – e muita gente estava segura desta fatalidade – as terras do Gurguéia deixariam de receber os peixes migrantes e a agricultura extensiva esgotaria as terras expostas ao sol, águas das profundezas sangrariam em poços artesianos sem reposição e surgiria um deserto em toda a região. Os peixes ficariam impedidos de subir as águas do rio pela construção de uma represa e as águas cada vez mais poucas e barrentas impediriam a navegação dos vapores, inviabilizando a civilização ao longo de seu percurso.

 

 

* Extraído da antologia  TODAS AS GERAÇÕES – o conto brasiliense contemporâneo, organizada por Ronaldo Cagiano. Brasília: LGE editora, 2006. p. 123-126.

 

Capítulo do romance (composto de contos inter-relacionados) AS TIAS (título provisório), obra ainda em processo de produção.

 


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