PRETEXTOS
MIRANDA, Antonio.Pretextos. Brasília: Edição do Autor, 1979. S. p.. Edição mimeografada, exemplar único, com os poemas do espetáculo poético-musical TU PAÍS ESTÁ FELIZ em versão original, em Português, pelo autor, com alguns poemas que não estão na versão de 1966, excluindo outros. Mas não chegou a ser encenada nesta versão...
Nove poemas de 1965, inéditos, extraídos do caderno acima:
Sou uma sombra
provenho de outras eras
do cosmopolitismo das maneiras
de recônditas reentrâncias
do caos telúrico procedo
da solidão do cósmico segredo
da substância de todas as substâncias
E a semente, o acaso,
o sucesso do ser
do ser humano ou do não ser,
eis a questão.
Faz-se metamorfose
e desfaz-se imprevisível
em minúsculo embrião.
CANÇÃO
Neste ano de Nosso Senhor Jesus Cristo
nasceram dois seres por segundo
125 por minuto
7.500 por hora
180.000 por dia
cada dia
65 milhões ao terminar o ano!
Agora somos 4 bilhões de bocas
dentes, estômagos
somos 4 bilhões
aguerridos,
comprimidos.
Nos Estados Unidos
22 milhões de cães matriculados
requerem, para sobreviver,
mais proteínas
que toda a população da Bolívia.
MUNDO CÃO!
CANÇÃO
Ainda resta uma esperança
mas além do rito e das palavras
além das guerras e dos martírios
além dos incrédulos e dos crentes
além da vida e para lá da morte
Por encima dos dogmas e dos partidos
além das religiões e dos flagelos
além do inferno e mais além dos céus
ainda resta uma esperança.
Além dos cataclismos,
pessimismos,
hedonismos
ainda resta um esperança.
(bis)
CANÇÃO
Infinitas vertentes
tortuosos afluentes
circulação envolvente
de estuante estuário
Meandros confluentes
pontes vilositárias
na estrutura nutriente
da irrigação placentária
É a matriz que me rejeita
e expulsa;
que se contraia e me expele
convulsa
Que se comprime
e me renega
infeliz
Que se exime
e me abstrai
miserável
que se protege
e me suprime
nasciturno
que se alivia
e me aborta
inviável
Que se esvai
e me entrega
prematuro
Rejeitado
Nasciturno
Expelido
Infeliz
Renegado
Miserável
Abortado
Semente
Abstraído
Inviável
Suprimido
Ninguém escuta
ou prescruta.
Tu que estás a morrer
indigente prematuro
na congênita prematuridade
de tua indigência
óh fracassado esforço
de sobrevivência
Com oitocentas gramas
de carne sem calor
no auge do estertor
os pulmões sem força
sem poder respirar
coração caótico
bulhas abafadas
já quase a parar
gemidos inspirados
do ar na passagem
somados a mais
na intensa tiragem
dos intercostais
músculos combalidos
total paralisia
os reflexos abolidos
em geral hipotonia
Indistinto o sexo
no plano sem nexo
de um famigerado
útero materno
Eis a tua figura
feto mortuário
monstro miniatura
a encher o berçário.
Com oitocentas gramas
e toda essa trama
de precoce sofrer
porque a esperança
com tão incerta chance
de sobreviver?
Ó raquítica semente
mirrado produto
concepção inconsequente
para vir ao mundo
nascendo moribundo
e com modelo imperfeito
trazido do leito
de uma puta fecunda
Nascer com um filho
viver como órfão
crescer sem família
sem lar, sem ninguém
temer os que te olham
sem dever-lhes vintém.
E estás condenado
no limiar da existência
a pagar o pecado
que nem sequer é teu.
Não. Não vivas. Resiste.
Morre, prematuro
e jamais permitas,
que a ciência
que te espera com insana loucura
te imponha a tortura
de aceitar a vida
tão cedo punida
num mundo de feras.
A razão de uns poucos
nas mãos de uns loucos
que dominam a terra.
Morre, prematuro,
que o único destino
para a tua vida
é a escravatura.
Morre, criatura,
antes que a estrutura
orgânica da dor
após o nascimento
desenvolva e te ensine
a não ver valor
no sofrimento.
Morre, prematuro,
que fora da morte
não encontrarás
o teu próprio lugar.
O mundo dos vivos
socialmente inativos
tornou-se incapaz
de mudar a sorte
que o acaso ditar.
Farias na fome
a macabra rotina
de um mártir sem nome.
Serias mais uma advertência divina
contra a social ruína
que devora o homem.
Serias anulado
em plena juventude
no trabalho forçado
devorador de virtudes;
e no campo ou na cidade
com teu magro salário
e toda veracidade
dos teus proprietários
terias prematuro
o teu futuro, sem futuro.
Não queiras deletéria
a tua senescência.
Mas, se no entanto,
apesar deste esforço
a ciência medonha
lograr obrigar-te
a viver entre nós
evite a vergonha
de vender tua força.
Realiza a tua parte
e não faças como tantos
que perdendo o encanto
perderam a voz.
Medita
raciocina
memoriza
delibera
comanda.
Um mísero filho
de estranho conúbio
que nasce sofrendo
e morre sofrendo,
merece a vida
maior atenção.
Tuas mãos frígidas
imobilizam-se
para sempre.
Nossas mãos calorosas
incansáveis te cortam
recortam
retalham e
dissecam.
Respeitem, jovens, meu corpo
— deixem-no no seio da terra
que a vida negou-lhe descanso.
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