Fonte: www.cm-pvarzim.pt
VERGÍLIO ALBERTO VIEIRA
(n. 1950, Amares, Braga) formou-se em Letras na Universidade do Porto, passando a leccionar em Lisboa a partir de 1993. Nos últimos anos, reuniu quase toda a sua poesia no volume A Imposição das Mãos (1999).
VIEIRA, Vergilio Alberto. Não vos torne a noite escura. Braga, Portugal: Crescente Branco, 2019. 55 p. 12,5 x 20 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
Quando muito
serei um dia esse desconhecido
que não soube quem foi nem ao que veio
o que ao passar esquecido
não deu a face nem branqueou as vestes
no sangue do cordeiro
outrora quando muito
*
Ninguém dirá
depois de tornar não voltaremos
quando o mundo se perder
desse buraco negro que além
descobriu ser agora para sempre
ainda não até ao fim
*
Elas são aos mães
filhas da morte que dor
em terra incógnita concebeu
sopro de extinta luz
na lâmpada de barro
elas são as mães
*
Em aparência
de sonho e cerimonial de canto
a luz de pedra nasceu
o filho que o santuário erguido
sobre a encosta de bétulas
roubou à natureza oferenda
a um deus solar
(...)
VIEIRA, Vergilio Vieira. EX PO EX. Braga, Portugal: Crescente Branco, 2019. s. p. 13 x 20,5 cm. Capa: Luis d´Orey. Col. in-versus.
Ex. bibl. Antonio Miranda.
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HERÁCLITO
A um grego foi possível
Outrora sonhar divinamente as águas
De outro rio
Esse rio é o homem e Heráclito
Ainda em sonho ignora
Quão indiferente sobre si mesmo corre
O rio
Agora é noite
E o grego as naturezas escuta
Em toda a parte enquanto
Pensa o fogo harmonioso do passado
O que na cinza se escreveu
Perdido foi em Éfeso
Artemis é essa inquietação segura
(As sequências de Pégaso)
O ELOGIO DA ÁRVORE
AR.M.R.
Eles cintilam os anjos
Para morrer contra a folhagem dúbia
A luz suportam Então esfriam
Sortílega força
Cerca na fronte a estrela do desastre
Sob incidência fixam na água
O surto das imagens
A espada austera O brilho
Dessa existência finitas sombras são
Assim chorado Linos
Soube pela morte o que é ser
Da solidão
(As sequências de Pégaso)
VIEIRA, Vergílio Alberto. Amante de uma só dia. Desenho da capa: Juan Carlos Mestre. Porto: Tropelias & Companhia, 2012. 102 p. (Livros de Horas)
SEXTA
1
Ele é O que me soube
cativar e, sem condição, me protegeu
como da lança se protege a mão,
que a arremessa.
2
Antes que o mundo
me desse por perdido, por perdido dei
o que renunciei ao mundo,
para de outro modo não vir a ser julgado,
e de mim ser temerário.
3
Para guardar a palavra,
esvaziei a boca, antes que, do coração,
me fosse arrancada, como a árvore
pela raiz.
4
De pouco me serviriam
(/bens que, como terra, juntei aos olhos
d' Aquele que sobre os povos
faz tremer as colunas do céu e o Setentríão
suspende, sobre o nada.
5
Sete vezes mais brilhará
o sol, para que a sementeira medre,
e abundância não falte ao que
com pá e crivo joeirou o trigo enganador.
6
Todas as feridas ligará, o Senhor,
ao que à mão dos sanguinários resistir,
fechando os ouvidos à soberba,
e os olhos à indecorosa ostentação.
7
Do fogo devorador me retirou
a mão, que não rejeitei,
sob pena de, concebido como feno,
ser dado à luz como restolho.
8
Do insensato me guardei,
mas não de mim, quando a língua me perdeu
e, sobre os meus lábios, o selo,
inviolável, se quebrou.
9
Por muito Julgar,
sem atender às razões do que julgava,
para trás fiquei, até ser levantado
do nada, em que me achei, perante o Senhor.
10
Do merecimento apenas sei
o que é dado saber ao que, do mundo retirado,
consigo fala sem palavras,
como quem escusa a grilheta que, pesada,
o prende à terra.
VIEIRA, Vergílio Alberto. Ardente a cegueira. Braga, Portugal: Crescente Branco, 2014. 32 p. 12,5x20,5 cm. Desenho Juan Carlos Mestre. ISBN 978-989-98702-0-8
O HIPOCRYTES
Séculos antes, arroteadores de terras
acossados pela fúria dos deuses, pela intempérie
que semeava a fome, e espalhava
a peste cobrindo, de pústulas, os corpos nus
e nada, nem a tortura denunciando
a gangrena com que os consome o riso do andrajo;
depois das guerras, heróis apenas
inconfessáveis vencedores desse destino
que, desde a origem, os levara
a atravessar incólumes a ardente sarça
que, tantas vezes, dizimara
os que, desertando dos campos de batalha,
confiaram a Téspis o poder de arrancar a morte
aos braços do amante antes que, transformada
[em mulher,
nela pudesse, a noite, por maldição,
gerar os filhos da vingança.
A TRAGÉDIA
Em qual das ilhas (tantos céus,
quantos os mares) se levantava primeiro o astro
a quem se dirigia a súplica, sob pena
de nenhum deus a receber, em represália
pelo cerco imposto à cidade?
Édipo-Rei, o taciturno, caído
em desgraça, órfão regressa, à terra donde veio,
para provar que todo o homem é, pois,
o homem que não foi, não apenas em Colono,
que a terra é terra de morte
em toda a parte, por ela dobram sinos de água,
não tivesse ele sido aquele belo, e jovem
fauno, com cauda e patas de cavalo que, uma vez,
por compaixão, tinha chorado, senão por si,
pelo que seria, caso o oráculo, apagado há muito
no umbral, o não fizesse saber ao mensageiro,
como quem beija a própria boca: «Também por ti,
ó escravo, espera a imortalidade um dia.»
VIEIRA, Vergílio Alberto. O Ilusório ponto do geómetra. Braga, Portugal: Crescente Branco, 2014. 44 p. 12,5x20,5 cm. Desenho Emílio Remelhe. ISBN 978-989-98702-1-5 Col. A.M.
(fragmentos)
10
Ilumina o mundo
a vacilante chama
na lâmpada de terra.
11
Qual pensador
num banco de coral
repousa o afogado.
12
Em toda a parte
e em nenhuma tem o Universo
centro e eixo a Terra.
13
Por entre as agulhas
do pinheiro de si se esconde
a enamorada lua.
14
Da nascente à foz
nunca do leito se levanta
o preguiçoso rio.
15
Para trás de si
não olha o espelho
que tudo vê.
VIEIRA, Vergílio Alberto. Todo o trabalho toda a pena. Obra poética. s.l. [Portugal]: Edição: Crescente Branco, 2016. 497+ 27 p.
Autógrafo do autor em dedicatória para Antonio Miranda
QUARTO CRESCENTE
Se tudo está em tudo desde a origem,
E da terra, a criação, número perfeito,
Com o mundo se parece por defeito
Das regras que, em excesso a corrigem;
Se tudo está em tudo, e à vida afligem
A ventura e a canseira de que é feito
O amor, que a natureza, bem ao jeito
Da morte, coroou, de sossego e de vertigem,
Que ´speranza inquieta, que perdição acalma,
Quem, de contente, sofre, e em pensamento
Vive, ao engano, a dor que lhe vai na alma,
Dando, assim, por justo merecimento
A mágoa que, em ardente busca e calma,
Incendeia de frio o sentimento?
(...)
CLARIDADE
1
Tudo o que é existe,
e porque existe, agora, em toda parte:
à claridade sucede a luz;
ao espaço, a natureza; e, à duração, o movimento.
Ver é ver o que se vê; e saber, saber,
o que se sabe, e não sabe,
considerado, ó alma humana, que o que se vê
é ainda o que não vemos, e que vemos
o que no tempo se retina
2
Em comprimento de onda
resplandece o que, anterior à origem,
percorre o espaço onde se move,
até ser luz, fuga veloz, que se afasta,
enquanto se aproxima.
3
Pode ser longa a luz
que todo o tempo luz no espaço onde se vê.
O que se vê vê-se, mesmo onde não se vê
e claramente é vista.
4
Lançado o grande movimento,
reunidos os sinais da creação, reconhecida a causa
sobre o efeito, e este no que, de súbito,
na causa acontecia, obrigou-se
a claridade a ir adiante da matéria,
o número a reconhecer a ordem, e a evidência
a juntar-se-lhe na curvatura do espaço:
não importa, onde, onde o onde não importa.
5
Como se já tivesse vindo a acontecer,
o universo aconteceu ser dado repouso ao movimento;
e, um após outro, à origem glacial,
que se repete, e não repete,
que se prolonga, e não prolonga,
qual sonho lembrado,
de memória.
6
Para onde correm, os rios flutuantes,
que a profundidade vertiginosa consiga leva
entre margens sem fim?
Mais longe chega o que não chega,
que a clara luz;
ao centro, toda a parte
é centro em toda parte.
7
Não de todo se contém,
o homem que o ser contem em si.
O que em si mesmo perde
o que de si se perde, ó homem,
não é destino, mas força
a que regressa, deslumbrante,
o universo de que vimos.
VIEIRA, Vergílio Alberto Vieira. Cleptopsydra. Pessanha revisited. Prólogo Ernesto Rodrigues. Desenho Sofia Areal. Braga, Portugal: Cresente Branco, 2018. 47 p. 13,5 x 20,5 cm (Coleção poesia 2) Ex. bibl. Antonio Miranda
/ Autógrafo do autor para Antonio Miranda:/
(CIRCUN)INSCRIÇÃO)
Eu vim à luz em um país perdido
A minha estrela é pálida e inerme
O mundo em que já tanto faz sentido
Não ser homem, sendo deus, para ser verme.
(AB)SOLVIDO
Entristece pôr fim, meu coração
A esse juramento que, absoluto,
Fora eterno noivado, resoluto
Princípio de vida, de morte, de paixão.
Do esquecimento não fica dor, senão
A que antes do tempo há-de ser luto;
Abandonado sonho, presente irresoluto,
Adeus sem despedida, sem canção.
A quimera que em barro modelada
No quebranto das mãos se tornou flor
Não voltará a ser flor enamorada.
Soubesse a luz que é terra o mesmo chão,
A noite que é dia a luz de cada alvor
Que amor traria ao mundo a redenção?
(DES)CAMINHO II
Desencontramo-nos um dia no caminho
À procura de nada, só eu o sei
Que a solidão é companheira da lei
Da gravidade, e ninguém cai sozinho.
Esquecido o amor, até a rosa é espinho
E a vida promessa a que faltei.
Rosa de sangue, mágoa a que me dei
Escondendo o rosto a sós em alvo linho.
Da alvura roubada, temerário,
Velo agora a sombra, solitário,
Do que ficou à luz, e à luz foi tanto
Que já não é pois dor de cada um.
A morte será sempre bem comum
Para o que chora à noite o mesmo pranto.
DIMENSÃO. Revista Internacional de Poesia. Ano XV. No. 24. Editor Guido Bilharino, Uberaba, MG: 1995. 150 p.
Ex. biblioteca de Antonio Miranda
DEGREDOS
1
E eram frágeis
as sombras
Em Egina
e no mar
2
(van Gogh)
Matou-o a cor
que tanto
amava
*
Página ampliada em junho de 2024
Página publicada em abril de 2010; amplida e republicada em julho de 2012. Ampliada e republicada em março de 2014. Ampliada e republicada em janeiro de 2017. Ampliada e republicada em dezembro de 2018. ampliada em janeiro de 2020
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