SOUSA VITERBO
Francisco Marques de Souza Viterbo
Erudito escritor e arqueólogo, natural do Porto, Souza Viterbo formou-se em medicina pela Escola Médico-cirúrgica de Lisboa, tendo servido por algum tempo na Armada. Tentado pelos estudos arqueológicos, trocou o lugar de médico pelo de professor de Arqueologia na Academia de Belas-Artes, onde tanto se notabilizou, dentro e fora de Portugal. Sua carreira literária iniciou-se pela poesia com o livro «Anjo do Pudor» (1869), ao qual se seguiram, no mesmo género. «Rosas e Nuvens», «Harmonias Fantásticas» (1875), «A Fonte dos Amores» (florilégio poético)—1889 — etc, composições que mereceram louvores da crítica, sobretudo a primeira, sobre a qual, até a imprensa espanhola se referiu, incitando o autor a não desistir de continuar a cultivar as musas. A despeito disso, abandonou o género para se dedicar especialmente a trabalhos históricos, que escreveu em tão grande número e fez acompanhar de tão vasta e importante documentação, que causa espanto não só como a pôde reunir, mas como a pôde coordenar, classificar e comentar, mormente num período da vida em que os males físicos, que o levaram à completa cegueira, já o tinham profundamente atacado. Faleceu em 1910.
LÁGRIMAS
Perguntas se eu chorei? Quem não chorasse,
ao ver perdida a luz do teu amor,
houvera um dia de subir-lhe à face
negro remorso d'infernal queimor.
Perguntas se eu chorei? Longo gemido
soltou na despedida o peito meu,
qual ave que, na volta, viu caído
o ninho, o verde ninho, em que nasceu.
Perguntas se eu chorei?... Harpa quebrada,
viúvo o seio, a inspiração perdi,
perguntas se eu chorei?... A madrugada
é noite perenal sem ti, sem ti.
A madrugada sim, ela é que enxuga
o pranto cristalino à flor do vai.
Perguntas se eu chorei? A esp'rança em fuga
converteu-se num ídolo de sal.
Não perguntes agora qual a essência
das lágrimas vertidas, por quem és.
Embebeste-as nas águas da inocência...
deixa beijar-te agradecido os pés.
PIEDADE
Não desperdices o enfeite
deste modesto jardim:
poupa aos lírios cor de leite
as redomas do cetim.
Poupa a flor de cálix d'oiro,
poupa a mimosa cecém:
cada flor vale um tesouro,
vale um poema também.
Dirão as brisas chorosas
desde manhã ao sol pôr:
— quem desfolhou nossas rosas?...
quem nos roubou nosso amor?"
Os insetos — luz sem chama —
dirão, passando em tropel:
— maldita a mão que derrama
as urnas do nosso mel!"
E o anjo que ali dormita,
à sombra desses rosais,
há de erguer a voz aflita
cortada por tristes ais.
Já quando a noite vai calma
dizem os ecos sutis:
— quem é que me corta a alma
e só me deixa a raiz ?
LIVRO DOS POEMAS. LIVRO DOS SONETOS; LIVRO DO CORPO; LIVRO DOS DESAFOROS; LIVRO DAS CORTESÃS; LIVRO DOS BICHOS. Org. Sergio Faraco. Porto Alegre: L.P. & M., 2009. 624 p. ISBN 978-85-254-1839-1839-5 Ex. bibl. Antonio Miranda
HETAÍRAS
Vós envolveis o corpo nas roupagens
mais finas, elegantes, caprichosas;
vedes passar, alegres, voluptuosas,
do amor fidalgo as lúbricas imagens.
Adormecei nas flácidas carruagens,
murchais no seio as pudibundas rosas,
e queimais essas bocas sequiosas
nas bocas feminis dos louros pajens.
Tendes tudo: os teatros, a riqueza,
as noites de delírio e morbideza,
todas as tentações, todos os bilhos!
E só não tendes nas estéreis pomas,
ó Vênus da esplêndidas Sodomas,
uma gota de leite para os filhos!
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Página ampliada e publicada em fevereiro de 2023
Página publicada em novembro de 2020
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