SEBASTIÃO DA GAMA
(1924-1952)
Sebastião Artur Cardoso da Gama (Vila Nogueira de Azeitão, Setúbal, 10 de Abril de 1924 - Lisboa, 7 de Fevereiro de 1952), foi um poeta e professor português, licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1947. Foi professor em Lisboa, (Escola Veiga Beirão, hoje, Fernão Lopes), Setúbal e Estremoz (Escola Industrial e Comercial).
Obra poética: Serra Mãe, 1945; Loas a Nossa Senhora da Arrábida, 1946, em colaboração com Miguel Caleiro; Cabo da Boa Esperança, (1947, e Campo Aberto, 1951. Obra póstuma: Pelo Sonho é que Vamos (1953), Diário (1958), Itinerário Paralelo (1967), O Segredo é Amar (1969) e Cartas I (1994).
Colaborou nas revistas Árvore e Távola Redonda.
Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos, não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos?
Partimos. Vamos. Somos.
OS QUE VINHAM DA DOR
Os que vinham da Dor tinham nos olhos
estampadas verdades crudelíssimas.
Tudo que era difícil era fácil
aos que vinham da Dor diretamente.
A flor só era bela na raiz,
o Mar só era belo nos naufrágios,
as mãos só eram belas se enrugadas,
aos olhos sabedores e vividos
dos que vinham da Dor diretamente.
Os que vinham da Dor diretamente
eram nobres de mais pra desprezar-vos,
Mar azul!, mãos de lírio!, lírios puros!
Mas nos seus olhos graves só cabiam
as verdades humanas crudelíssimas
que traziam da Dor diretamente.
SOMOS DE BARRO
Somos de barro. Iguais aos mais.
Ó alegria de sabê-lo!
(Correi, felizes lágrimas,
por sobre o seu cabelo!)
Depois de mais aquela confissão,
impuros nos achamos;
nos descobrimos
frutos do mesmo chão.
Pecado, Amor? Pecado fôra apenas
não fazer do pecado
a força que nos ligue e nos obrigue
a lutar lado a lado.
O meu orgulho assim é que nos quer.
Há de ser sempre nosso o pão, ser nossa a água.
Mas vencidas os ganham, vencedores,
nossa vergonha e nossa mágoa.
O nosso Amor, que história sem beleza,
se não fôra ascensão e queda e teimosia,
conquista... (E novamente queda e novamente
luta, ascensão... ) Ó meu amor, tão fria,
se nascêramos puros, nossa história!
Chora sobre o meu ombro. Confessamos.
E mais certos de nós, mais um do outro,
mais impuros, mais puros, nós ficamos.
CANTILENA
Cortaram as asas
ao rouxinol
Rouxinol sem asas
não pode voar.
Quebraram-te o bico,
rouxinol!
Rouxinol sem bico
não pode cantar.
Que ao menos a Noite
ninguém, rouxinol!,
ta queira roubar.
Rouxinol sem Noite
não pode viver.
MADRIGAL
A minha história é simples.
A tua, meu Amor,
é bem mais simples ainda:
"Era uma vez uma flor.
Nasceu à beira de um Poeta..."
Vês como é simples e linda?
(O resto conto depois;
mas tão a sós, tão de manso
que só escutemos os dois).
O SONHO
Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos,
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e do que é do dia-a-dia.
Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.
PEQUENO POEMA
Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
para que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha mãe.
GAMA, Sebastião da. Campo aberto. Prefácio de Maira de Lourdes Belchior Pontes.3ª. Edição.Lisboa: Edições Ática, 1967. 112 p. 14,5x19,5 cm. Obras de Sebastião da Gama IV (Coleção “Poesia” Fundada por Luiz de Montalvor) Ex. bibl. Antonio Miranda
MANEL
E mármore frio,
mármore sereno.
As mãos nem sequer
(cruzadas e calmas)
nos dizem adeus.
Os olhos, cerrados,
olham para dentro.
Os lábios, sem cor,
dizem para dentro
coisas tão profundas
que já são da Morte.
Mesmo assim, na testa
nem uma só ruga.
Nas faces tem lágrimas
que são de nós todos.
Mas ele é a estátua
depois de acabada.
—: Os olhos, a boca,
perfeitos, correctos.
As mãos, verdadeiras.
Cabelos de gente.
Falta só um nada:
Nada mais que a vida,
a estátua correcta,
perfeita, acabada.
MANHÃ NO SADO
Brancas, as velas
eram sonhos que o rio sonhava alto.
Meninas debruçadas em janelas,
via-se, à flor, azul das águas, as gaivotas.
E a Manhã quieta (sorrindo, linda, vinha vindo a Primavera...)
punha os pés melindrosos entre as conchas.
Derivavam jardins imponderáveis
dos seus passos de ninfa
e tremiam as conchas
de súbitas carícias.
Longe era tudo: o medo dos naufrágios,
as angústias dos homens, o desgosto,
os esgares das tragédias e comédias
de cada um, os lutos, as derrotas.
Longe a paz verdadeira das crianças
e a teimosia heróica dos que esperam.
Ali, à beira-rio,
de olhos só para o rio, de ouvidos surdos
ao que não é a música das águas,
um sossego alegórico persiste.
Nem o rumor dos seios capitosos
da Manhã, que nas águas desabrocham
e flutuam, doentes de perfume.
Nem a presença humana do Poeta
— sombra que a pouco e pouco se ilumina
e se dilui, anónima, na aragem...
O CAIS
Já o cais não é de pedra,
de tanto sentir o Mar.
Já não é, a pedra, lisa:
já ganha forma de velas
pandas de vento e de orgulho;
já deixou de ser branquinha,
p´ra ser azul como as águas.
Já o cordame, que sonha
noite e dia sobre o cais,
o tem o sonho mudado
em alguns prenhes de iodo.
Degraus de pedra se aninham
e pelas ondas se atrevem
— botes sem mestre, perdidos,
sem outro leme que o gosto
de ir pelas ondas adentro.
Marujos que o nunca foram,
assentadinhos no cais
desde a hora do nascer,
quem foi que disse que tinham
raízes naquelas pedras?
— Já lhes despontam nas costas,
já por ares e mares os levam,
asas leves de gaivota.
Cada traineira que passa
convida o cais a sair.
Já o cais não é de pedra.
O sal moldou-lhe uma quilha,
as ondas o encurvaram
os limos o arrastaram
p´ra lá de todo o limite,
e o cais cedeu ao convite
de ser um barco sem mestre.
Lá vai perdido nas ondas
e não lhe importa a chegada.
Deitou a bússola ao Mar.
Fez uma estaca do leme,
que atesta o sítio em que foi.
Voltou as costas à terra
e o seu destino cumpriu-se,
que era partir e mais nada.
Página publicada em maio de 2008; pçagina ampliada em abril de 2018
|