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ROSA ALICE BRANCO
Nascimento: 1950. Mestre em Filosofia do Conhecimento pela Universidade Nova de Lisboa, com uma tese sobre a percepção visual em Berkeley, nascida em 1950. Ensina psicologia da percepção na Escola Superior de Artes e Design. Participou no Grupo de Estudos de Semiótica e Poética do Porto, tendo sido um dos responsáveis pela revista Figuras e pertence à direcção da revista Limiar. A sua poesia, reflectindo sobre paradoxos filosóficos e linguísticos, ocupa um lugar único na poesia portuguesa contemporânea mais recente.
Bibliografia: Animais da Terra, Porto, 1988; Monadologia Breve, Porto, 1991; A Mão Feliz. Poemas D(e)ícticos, Porto, 1994; O Desenvolvimento da Filosofia do Sugerir: a Percepção como Operação Interpretativa, Lisboa, 1990; O Que falta ao Mundo para ser Quadro, Porto, 1993 Fonte: www.infopedia.pt/
Arte poética
Gostaria de começar com uma pergunta
ou então com o simples facto
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.
o que é então o poema?
Um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?
Lá fora um jardineiro trabalha,
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.
Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte
e depois entrar num canteiro do poema,
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.
O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que
a criança se atirou ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gosta de orvalho
ter ou não entrado no poema!
Poemas extraídos da revista POESIA SEMPRE, Num. 26, Ano 14, 2007. Edição da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
A TUA PELE DESCALÇA
Veio uma onda . A varrer o meu sono .
Caminhava nele como caminho na areia .
Nada me une ou divide. Nada me retém.
Sentas-te onde me sento no teu colo
e peço sempre a mesma história . A tua voz
cria as memórias que hei-de ter . Por agora
caminho ao longo das gaivotas e grito como elas
quando a maré baixa . Às vezes apoio-me num rochedo
para dizer “casa” e logo desmorono. Sigo descalça
como tu para dizer “seguimos”. Mas são apenas sons
sob o sol de maio. Murmúrios do que não serei.
Sempre tive problemas com o verbo ser. Faço
e desfaço as malas, entro e saio das gavetas.
Pausa na camisa que vestiste da última vez.
Uma vontade de a amarrotar, desapertar os botões
e sentir lá dentro a tua pele cá fora.
Tudo isto é tão verdade como podem ser os botões
de uma camisa escrita. Confesso que não pensei na cor,
ou se era às riscas. Agora acho que podia ser a de quadrados.
Em qualquer delas a tua pele entra na minha.
De
Rosa Alice Branco
Soletrar o dia.
São Paulo: Escrituras editora, 2004.
111 p. (Col. Ponte Velha)
ISBN 85-7531-122-0
"Esta me parece a afirmação mais substantiva da poética de Rosa Alice Branco, a de que todos os sentidos são táteis. As leituras adentradas em grutas filosóficas ou estéticas, atentando para demandas míticas ou metapoéticas, ajudam parcialmente a soletrar o dia dessa mulher que escreve com toda fluidez com que se deixa viver. O domínio de uma linguagem, que ela o tem com depurado esmero, não lhe inventa ou determina passos. Assim como ela toca tudo o que se sente, não pode compreender sua poética ausente dessa condição tátil a que me refiro. Diz com todos os verbos: é preciso oca a imaginação e deixar-se tocar por ela. Não abole a transcendência, claro está, mas lhe diz com toda a clareza que ela não poderá jamais ser alguém sem a imanência." FLORIANO MARTINS
Ilusionismo
Não sei o que te diga. E se soubesse
a quem o diria? Já não sei inventar os domingos.
Pode-se inventar tudo menos os domingos.
Começo a vestir-me para o outono, começo
por este dia que só de dizê-lo é inverno.
Ponho uma camisola clara para afugentar a noite.
E todas as horas. As que ficam no fundo
e arrasam a gaveta. O peso incontável
de terem partido os dias da semana
iguais entre si, iguais a ti e a mim.
Fiou um segundo esquecido na gaveta.
É com ele que farei o dia e todos os dias
que faltam para que não me faltes.
No centro do vermelho
Olha como caminho ao lado do que digo
quando me esqueço de sentir o que me toca
e não podes querer-me porque estou ao lado
do que sou. Afasto-me de nós, quando de mim
desvio o olhar e as mãos buscam ao lado
do que está e encontram as palavras longe
da boca que humedece o som e o sentido.
Quando digo ao lado do caminho é também
perder o sentido que me fez andar
e pôr de lado o outro, não ser para ele
que semeio as palavras no chão da casa
quando se deita ao lado do meu corpo.
Dispo-me fora e dentro do que digo,
chamem-lhe coração ou intestinos,
é com a pele que te olho nos olhos,
as palavras acorrem aos ouvidos
c a boca está no centro do vermelho.
Sei que alguém está ferido, tem fome,
está só, e é por isso fútil cada letra
que não seja o tecto das palavras.
Página publicada em novembro de 2009; ampliada e republlica em janeiro de 2011.
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