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Fonte foto: http://g1.globo.com/pop-arte/flip/2015

MATILDE CAMPILHO

 

CAMPILHO, Matilde. Jóquei.  Lisboa: Tinta-da-china, 2014.   139 p.  Ex. bibl. Salomão Sousa.

 

     CONVERSA DE FIM DE TARDE DEPOIS DE TRÊS ANOS NO EXÍLIO

 

Os garçons empilhando as cadeiras

você me olhando e me pedindo que

fale Por Favor Fale Mas Não Escreva

eu evitando o toque ruim dos ponteiros

do relógio que anuncia a já famosa fuga

de nossos corpos cada um para sua

ponta da cidade—se nosso amor fosse

revólver eu seria o cabo e você a mira

tal como dizia a professora Sofia Jones

é terrível a existência de duas retas

paralelas porque elas nunca se cruzam

e elas apenas se encontram no infinito

a verdade é que nunca nos interessou

a questão do infinito mas o resto

das ideias matemáticas claro que sim

eu na verdade prefiro mais de mil vezes

sua chávena de chá ficando fria sobre a mesa

enquanto você fala sobre raízes quadradas

enquanto você fala sobre ladrões de figos

enquanto você fala sobre o tropeço da baleia

subitamente eu já nem sei sobre o que você fala

porque a forma como seu dente incisivo corta

e suspende toda a beleza da cafetaria

faz com que eu novamente entenda que

pelo sétimo dia é chegada a hora do cuco

e do canto do cuco

portanto eu pego minha bicicleta

e como de costume você faz meu retrato

de cabelo todo desenhado no vento

em jeito de menino que está sempre indo embora

à mesma hora e que amanhã se tudo der certo
voltará à mesma hora para o mesmo amor
a mesma mesa a mesma explosão
com toda a certeza a mesma fuga
porque você e eu a gente é feito de matéria
escorregadia, i.e., manteira, azeite, geleia
e espanto.

 

 

RUA DO ALECRIM 

Uma menina desenha uma estrela de cinco pontas
a esferográfica Bic na palma da mão de outra menina.
Chove, e mesmo assim o desenho não sangra:
é preciso muito mais do que certas condições
climatéricas para que o amor escorra.

Assisto a toda a cena e penso que esta visão,
real ou inventada,
é muito pior do que a verdade a bofetadas.

 

PEDRA EXPLODIDA NA MÃO DO MONGE

Penso em astronautas
não penso em árvores chinesas
penso na contagem dos cabelos
não penso em punhais
disfarçados de arma desportiva
Penso em camisas vermelhas
em minha camisa vermelha
com um pequeno buraco
na zona lombar
Penso no êxodo
dos vendedores de picolé
nas migrações pendulares
penso em garrafas vazias
penso em tanques de guerra
penso em jabuticaba & acarajé
Penso no rosto e nos braços
da cantora de Santo Amaro
penso em pipas e em meninos
soltando pipas.

 

GNOMON

 

Eu queria tudo como

no livro monogramado

A musa

As crianças

A discussão à chuva

que nos obrigaria a perceber

a circularidade mística

de algumas árvores

O choro

O recado escondido de Chillida

Queria tudo como

no lenço das aparições

O gengibre assustando-nos

de vez em quando os pratos

O morro da Lopes Quintas

que você nunca chegaria a ver

Mas que certamente verá

Só não mais por meus olhos

(como você ainda disse:

o caleidoscópio através

do qual sucedia o mundo)

Queria tudo sobre o pano

de um chapéu de tirolês

Tudo tão importante quanto

a descoberta grega

do ângulo de noventa graus

Queria tudo em jeito de promessa

de um acontecimento que mudaria

a perceção da sombra humana

Mas você insistiu em morrer

Você sempre insistia em morrer

e finalmente conseguiu
Acontece que agora
Mil anos depois
do enterro de sua bandeira
Depois do choro

Depois da impressionante mudança
nas ocorrências diárias do mundo
Você fica se queixando
Sobre a queda da musa
Sobre a saudade das crianças
Sobre a reprodução profícua
de certas árvores no jardim.
As coisas que a gente aprende
depois dos 30 anos: sempre achei
que os mortos fossem mudos
E afinal os mortos se descontrolam
no exercício alto da sintaxe.
 

 

 

CAMPILHO, Matilde.  Jóquei. São Paulo: Editora 34, 2016.  149 p.  Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Bracher & Malta Produção Gráfica.  ISBN 978-85-7326-593-4  Ex. bibl. part. Antonio Miranda 

 

ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS AMAR NESTE LUGAR

 

Lembro-me muito bem do tal cantor basco

que costumava celebrar a chuva no verão

Não ligava quase nada para as conspirações

que recorrentemente se faziam ouvir

debaixo das arcadas noturnas da cidade

naquela época do intermezzo lunar

Foi já depois do fascismo, um pouco antes

da democracia enfaixada em magnólias

O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos

me ensinaram que se deve aproveitar a época

de transição para destrinçar o brilho

As revoluções sempre foram o lugar certo

para a descoberta do sossego:

talvez porque nenhuma casa é segura

talvez porque nenhum corpo é seguro

ou talvez porque depois de encarar uma arma

finalmente seja possível entender

as múltiplas possibilidades de uma arma.

 

 

 

AVARANDADO

 

Quarta nota para
a manhã infinita:

 

Afinal o grande amor
Não garante nada mais
Do que as 12 graças
Desdobradas pelos
Corredores do mundo
Agora isso é mais
Do que suficiente
E apesar dos bofetões
Do tempo invertido
Apesar das visitas
Breves do pavor
A beleza é tudo
O que permanece

 

 

Página publicada em março de 2016; ampliada em janeiro de 2017.


 


 

 

 
 
 
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