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POESIA SURREALISTA PORTUGUESA
MÁRIO HENRIQUE LEIRIA
Mário Henrique Leiria (Lisboa, 2 de Janeiro de 1923 — Cascais, 9 de Janeiro de 1980), foi um escritor surrealista português. Foi aluno da Escola Superior de Belas Artes, de onde é expulso em 1942 por motivos políticos. Participou nas actividades do Grupo Surrealista de Lisboa, entre 1949 e 1951 e em 1962, depois de ser preso pela PIDE aquando da "Operação Papagaio", instala-se no Brasil onde desenvolve várias atividades, como a de encenador e de director literário da Editora Samambaia. Voltou para Portugal em 1970.
W tudo o que existiu entre mim e o que tu serias foi como a nuvem ligeira muito rápida veloz e diferente a única verdade que poderia trazer-nos o encontro dos nossos corpos por existir
o ódio a raiva trópico claro exaustivamente procurado como um braço que se prolonga até ao infinito
a ti que foste real como as aves que partem para o ignoto toda a minha solidão
a ti que foste a única que verdadeiramente existiu todo o meu sangue toda a minha ânsia
tu a primeira que só para mim és a herança do meu ódio
para ser conservada só por nós dois para continuar mesmo depois de eu existir para continuar mesmo sem tu existires senão para mim
para ti a recordação perdida do que nunca existiu porque seria demais se aparecesse para ti
o meu grande amor leito de encontro já desfeito há séculos
DOZE JOVENS POETAS PORTUGUÊSES. Org. Alfredo Margarido e Carlos Eurico da Costa. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação, Ministério da Educação e Saúde, 1953. 56 p. (Os Cadernos de Cultura) 14x19 cm. Impresso pelo Departamento de Imp. Nacional. Inclui os poetas: Alberto de Lacerda, Alexandre Pinheiro Tôrres, Alfredo Margarido, Antonio Maria Lisboa, Carlos Eurico da Costa,Carlos Wallenstein, Egito Gonçalves, Eugênio de Andrade, Fernando Guedes, Henrique Risque Pereira, Mário Cesariny de Vasconcelos, Mário Henrique Leiria. Ex. bibl. Antonio Miranda
CANÇÃO DA MANHÃ
como os estranhos pássaros nascidos em tua boca como as esmeraldas que formam as asas dos teus ombros como os longos ramos da árvore de sono do teu braço como o grande espaço em que o teu corpo repousa deitado na tua própria mão como a tua sombra idêntica à nuvem que se encontra no mar
assim é a presença que de ti tenho levando-me ao longo do caminho de flores rubras
assim é o desejo de te encontrar pela estrada que nossos pés abrirão triunfantes
Deixa que eu quebre tudo que tenho e que terei
e a minha infância inteira muito longa e cruel deixa que dela me fique apenas essa crueldade e que nela só eu siga ignorando o que me deste e que martelo ou pedra eu continue partindo quebrando esfacelando dilacerando o teu corpo que já não está ao meu alcance deixa-me ser anatomicamente autêntico sem êrro sangrando perdido para sempre
POEMA
eu sei que há um lugar por descobrir
aí o teu corpo dois seios despedaçados
A CIDADE ADORMECIDA
Foi decretada a mobilização geral. Bom, isso não teve importância nenhuma tanto mais que era simplesmente por causa de haver guerra. Era uma guerrazinha pequena que estava metida numa gaiola e piava muito, sempre a pedir alpista e arroz do Sião.
Davam-lhe alpista, mas arroz nunca lhe davam e, por isso, foi decretada a mobilização geral. Então começou a tocar o tambor e lá fomos todos, com a espingarda na algibeira e a mochila cheia de não-fazer-nada. Na guerra só o que se fazia era comer. comiam-se nabos, comiam-se lições de inglês e comia-se muito mêdo que nos era dado todos os dias pelos majores que lá não iam porque ali era longe. No fim comeu-se o decreto de mobilização geral com o arroz do Sião que não foi posto na gaiola da guerra.
Voltamos todos a tocar corneta porque não lhe tinham dado botas.
Página publicada em dezembro de 2013; página ampliada em outubro de 2020
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