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MARIA ESTELA GUEDES

MARIA ESTELA GUEDES

 

POEMÁRIO

Maria Estela Guedes

 

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Editora do TriploV (http://www.triplov.com). Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo; A Poesia na óptica da Óptica. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008).  

 

AMOR INCA 

 

Ouvindo "A Night at the Opera" na arrebatante voz de

Freddie Mercury.

Os Queen vibram aaaalto na rua

Assoprados de um barzito em Copacabana.

Where?! Copa

Cabana, uma vilória afavelada

Nas margens extasiaaaadas do Titicaca.

 

Duzentos e cinquenta quilómetros

De comprimento,

Noventa de largura,

Trezentos e cinquenta metros de maior profundidade,

Mais além, loooonge, à distância

De uma interminável viagem on the road

Com mulheres de saias pela cabeça

Velhos xamãs quechuas

Trepidando o ônibus jack-jack-jack

Pela estrada empoeirada entre securas savanícolas

E muitas pedras que pastam cabras magras

Tapando as orelhas à lataria automóvel

Nessas estradas mais compridas que Portugal

Estendido entre Galiza e Promontório Sacro.

Ahhhhhrrrffffffff!

Jack-jack-jack

Kero-kero-kerouac.

Algures, no Peru.

Um lago de altitude.

O maior de que existe notícia ou o mais alto

Ou o mais tranquilo

Ou o mais extasiado por ter dormido com Sol e Lua

Esses deuses de maior

Altitude ainda.

Quanto? Não sei, deixa ver: algo à roda dos quatro mil metros

Ou mesmo quatro e meio. O suficiente para

Se respirar a custo

E o coração bater no peito

Feito um velho autocarro a deixar cair as peças

Pela estrada que vai dar a Puno.

Bate jack-jack-jack

Bate Jack-jack-kerouac.

 

Lago da Tranquilidade devia chamar-se.

Pouco turismo, encanto na pobreza,

A imensidão azul-deserto, sem uma colcha à janela,

Sem uma porta da rua, sem uma criança,

Sem um barco em cima.

Água apenas e lisa como a Bela Adormecida.

 

Terra de incas, de altares ao Sol e à Lua

No cume de escadórios íngremes de tantos degraus

Quantos os dias do ano

Em ilhas escondidas na câmara ciano-líquido.

Lamas juvenis viram o focinho tenro

Para a objetiva

Enquanto meninos pedem dinheiro aos turistas

Pelas fotografias.

 

Regatos deslizam entre latidos de ervitas

Pelos degraus abaixo

Em tiquetiques de relógio

E chapechapes de jangadas.

 

Mal de altura, o fôlego perde-se a cada passo, e então

A subir tantos graus quantos os degraus

Da escada de Jacob, que só no regaço de Deus terminam?

 

Mastiguemos umas folhas de coca, bebamos chá de coca,

Ilusões que não fornecem oxigénio, apenas tranquilizam

Quem tem fé em elixires mágicos.

 

Copacabana, a pobreza espreguiçada nas margens

Do luxuoso Titicaca. O imenso lago de altitude

O andino mar interior

Como um suspiro de luzidia alga.

 

Loja sim, loja não, é uma agência de viagens.

Quatro horas da tarde, passa gente despida e gente vestida,

Reflectindo a amplitude térmica diurna

Despropositada.

 

De noite, um gelo. De dia, os tropicais abrasões solares.

Por isso as samarras quentes, os ponchos, os gorros

Da meia-noite ao meio-dia

E ao mesmo tempo as havanesas frescas e outras vestimentas

Do meio-dia

Nas tiritantes tardes

A crepitarem nomes de ilhas das Bermudas.

 

Cabelos lindos os destes incas, negros e lisos,

Negras e lisas noites

Brilhantes e compridas.

E oleosos também. Ou secos e partidos

Mas no olhar cativeiro de imagens

Ficam lágrimas escuras

De fios soltos e enrolados na nuca.

De noite adormecem com ela  em sonhos de

Ilha do Sol e Ilha da Lua.

 

Profundo Titicaca, formoso céu és

Em terra liquefeito.

Tiro-te o boné! E os

Óculos escuros,

Para te ver as cores verdadeiras.

 

Copacabana, margem boliviana do lago Titicaca.

As mulheres

Carregam cargas à cabeça e filhos às costas

Para vender aos turistas, os homens ficam a ver.

Vai gente civilizada e europeia buscar essas crianças

Morenas

E pequenas

De rostitos precisos e agudos sorrisos

Na cratera dos seus olhos de obsidiana.

É rápida a transação e isenta de burocracia.

 

O Titicaca, ao fundo da miséria, encantada baía

Com dois ou três

Gansos flutuantes, mas

Nenhum humano se aventura nas águas

Que adivinho cristalinas pedrarias

De tão geladas.

Até onde o olhar avista, é mar azul-tranquilo

O altivo lago.

 

Passam dois jovens incas

Profusamente abraçados – que quererá isso dizer?

O Mário falou de gatos por e-mail,

Deve ter-se esquecido de um emoticon

Para subtrair os Carnivora à semiótica fauna.

 

Indaguei e só surgiram à tona da conversa

O já conhecido llama ou vicuña (Camelidae),

Que tem por ofício na ilha da Lua

Deixar-se fotografar com turistas,

E um tigrillo que também é gato,

Mas não abraçado a outro

Pela cintura

Na mais turística rua

Desse quase reles lugarejo

Cujo nome espelha o da outra Copacabana.

Copa-

Cabanas lhes chamaria não fora o material de construção

Mais evidente ser o burro

Isso, o tijolo, o barro, a seca lama.

 

Outros típicos Felidae apreciamos

Nos cafés a fazerem companhia

A senhoras sós

Como acontece também no comboio que trepa de

Assuão para o Cairo,

Nocturno e generoso em miados egípcios

Tão semelhantes aos venezianos

Em cantadeiras gôndolas.

 

O amor perde-se e ganha-se nos vários tons de

Azul-tranquilo

Do altaneiro Titicaca.

 

Assim admiramos europeias com incas

Machos ao lado

Em perfis esculpidos de condor

Nas esplanadas. O contrário ainda não vi. 

 

O ar sem oxigénio é seco.

Abrasa o calor mas não se transpira.

Trespassam-nos os olhares de índias com nariz de rochedo

Na sua tez morena sem lua. Difícil distingui-las umas

Das outras. Belas raparigas que o amor,

Em sua dimensão maternal,

Transforma em matronas sujas.

 

Sujas, as saias cor-de-rosa aos folhos, recamadas

De lantejoulas,

O embrulho dos filhos e haveres às costas, a barriga

Inchada.

Baleias com um ridículo chapeuzinho à banda.

 

Tudo isto me tem causado pesadelos.

 

Passamos demasiadas horas na cama, penetrando

E deixando-nos penetrar pela carne.

 

O primeiro

Foi o de me rasgarem o ventre com um punhal.

Vvvvvvvveeeeeeeeeee!!!!!!!!!! Viiiiiieeeeee!!!!!!!

Um som fino a laminar o silêncio.

Aflijo-me em ânsias, gillettes lancetantes,

Antes de agonizar.  

 

Noutra noite sonhei que me estava a transmutar

Num ser viscoso, verde e

Imundo, com tentáculos adesivos

E uma comprida infelicidade de lula.

Sepia officinalis, mais cientificamente.

Se não for Loligo, ou mesmo Octopus vulgaris.

Esses animais sem vértebras

Que escorrem cromatóforos

Deixando luminosos os dedos.

 

Esta noite sonhei que as pessoas andavam a ser mortas

No metropolitano, em Lisboa. Sonhei isso,

Aqui,

Nestas alturas desgraçadas dos Andes.  

Eu ia com outros numa carruagem, deitados no chão, para nos defendermos. Quando o metro começou a andar, um tubo negro preso à parede deslocou-se, dobrou-se como ânfora redonda, e começou a soprar um gás pela boquinha de serpente. O jacto expirado com ruído frio, senti o odor do clorofórmio e gritei que nos estavam a anestesiar. Consegui fugir quando o metro parou na estação seguinte, mas corria pela noite sem ruído e sem dinheiro, sem cartões de crédito e sem documentos, e tinha de empreender uma longa viagem pelas favelas bolivianas até alcançar a segurança de uma casa.  

A viagem experimenta o corpo,

O erotismo,

A sexualidade. Porém o espírito, a alma,

O que é feito deles? O que é feito do amor?

Devem estar cloroformizados.

 

Só o corpo se move nos écrans,

Voga como nenúfar

No azul-absorto do Titicaca.

 

Abraçado a espáduas morenas de incas

Nas praças, de preferência atlético e sedutor.

 

A alma foi sequestrada em La Paz

Por um bandido com charme

Que te levou todo o dinheiro

E agora não consegues regressar a casa.

 

Mais longe, as ilhas flutuantes dos Uros,

Feitas de totora

Aguardam na sombra que as fixem à terra

E alumbrem com luz eléctrica.

Ouve-se a cantiga de um telemóvel

Abafada a estridência no chão de folhas que sussurram.

Os barcos também de junco regressam

Às ilhas redondas de crepúsculo,

Os remos ruce-rucem no azul-cobalto das ondas

A fímbria dos vestidos de baile

Assim: taf-taf-taf-tafetá

Taf-taf-tafetá.

 

Bolívia e Peru, 2007/Lisboa, 2008

 

 

EU, DESCONTRAÍDA, A FAZER A BARBA

 

Eu nunca fui a S. Francisco.

Sonhei porém que um geiser

explodia numa girândola rósea-de-todas-as-cores

ao fundo de uma ladeira de S. Francisco.

Freud teria alguma palavra a dizer sobre este carnudo

assunto, mas disso sei eu mais do que ele.

Primeiro foi o som, um Buuuuuum!!! de explosão,

estava eu nessa altura muito descontraída

a fazer a barba.

Corremos os dois para a porta da barbearia.

Os carros andavam de saltos altos

em cima das lombas

trepando ofegantes

por aquela rua de barrigas empinadas.

Alguns automóveis iam gritando

como sirenes da Polícia

e outros iam pulando para a valeta

e resfolegavam uns contra os outros

ao fugirem do geiser de todas as cores,

jorrante num fundo de rua

de thriller rodado por noites betuminosas

na cidade americana de S. Francisco.

Estava eu espantada a ver tudo aquilo

no meu sonho de alto de ladeira,

à porta da barbearia onde fora

aparar barba e bigode.

Toalha branca ao pescoço,

num ambiente de vapores termais,

fitava o geiser furta-cores

a despedir luz em rajadas para cima

como bomba de lívidos neutrões.

O barbeiro, de navalha na mão, com a bata de nuvem

em carneirinhos e cúmulo-nimbos aconchegantes,

gemia: Ai! Ai!......................

Os olhos de cor melada, inodoros, derretidos em lágrimas

de chocolate cremoso.

Senti tanta atracção por ele que o abracei e disse:

Meu, para nos salvarmos,

temos de sair daqui numa rapidinha!

E ele respondeu, o gesto verde-esmeralda:

Nem tiro a bata, tenho ali o carro, vamos embora numa branca!

O calor de estufa subia pela ladeira

como salamandra aquática,

Triturus marmoratus, verbi gratia.

Sem intervalo entre vapor e suor,

uma espécie de concha a chupar entre pernas,

sufocávamos no sonho de cor morna e demasiadas palavras

gostosentas entesonadas dos vapores termais.

E assim fomos de carro ao contrário da direcção do geiser,

ele de mão na cabeça das mudanças,

a roçar para cá e para lá,

eu de toalha ao pescoço e ele de bata branca,

a navalha deixada no peitoril da janela da barbearia

para fazer ela as barbas sozinha

quando o geiser rebentasse dentro do útero da noite

a tensão partida enfim num ronronar ruivo de gato.

 

 

NA VÉSPERA DE EU SER INICIADA

 

Na véspera de eu ser iniciada  

Receando qualquer percalço físico

A mim mesma repetia

A tão nítida chapa fernandina

À mingua de modelo verdadeiro:

Neófito, não há morte!

Sim, porque o carvão não é inofensivo

Faz fagulhas, o lume crepita a vermelho e azul

Sobre o veludo negro da morte

E o sangue mostra os dentes, seja em fio ou borbotões

Enfim, pensava, à falta de outro conforto

Que o neófito não morria, e não morre realmente,

Apesar de, defunto,

Ir vogando entre flores num caixão cheio de luzes

Como dos barcos ao longe

Dos barcos ao longe carregados de flores

Fala esse outro lampião, Camilo Pessanha.

Na véspera de eu ser iniciada, temia,

Para enganar o terror, sujar a melhor roupa

A cavar a minha própria sepultura

Em terra húmida, de lama esverdeada,

E a nela me deitar ao comprido, como quem à cama regressa

Depois de nela ter nascido.

Sim, porque não é fútil o carvão

Ele queima e deita faúlhas

E no petiscar vermelho e azul da sua chama

Dormem lobos maus de negro sorriso.

E então eu pensava, nesse verdadeiro raciocínio

Saído como poucos do húmus de Fernando Pessoa

Que a morte iniciática não era morte

Como realmente não é

Apesar de temer que ela me arreganhasse os dentes

Ao cavar por minhas próprias mãos a cova onde me deitaria

Assim a rachadora rachando lenha para se queimar

O lume acende com achas de cedro

O incorruptível - apesar de falso - Cupressus lusitanica

Negra lama lume lento lábios frios

Ei-la, gélida, que com mão escanzelada me levanta

E só dentes e perna de pau avisa:

Neófita, levas uma punhalada se não morres!

E como foi estranho e espantoso

Representar afinal o papel de Lucy no "Ofício das Trevas"

Ali jazendo, com a lápide pesada contra o coração

A respirar com dor, ouvindo

Morta jazida num berço a vogar no Nilo

O rio que é essa fita de água estendida no deserto

Entre duas tiras verdes de tamareira

Phoenix - será Phoenix? - talvez seja, mas não a reclinata

Ali deitada, a Fénix, no negro de uma obra alheia, ouvia

O hino a Osíris, Sol que se despede e ao outro dia regressa,

Os membros decepados e arremessados para todos os

Vales e climas

Assim a minha alma estagnava na língua dos mistérios
E morria como Osíris, tão estranho, tão estranho não poder invocar

Nem pai nem mãe de carne, o Sol pesava de encontro ao coração

Muito mais que ligeira pena de avestruz na balança de Anúbis

Eu era aquela morta em absoluto falecida

Que noutro mundo tão recuado para fora deste

Comezinho mundo de fetos

E urtigas confessava

Lucy também se confessa em negativo

Não, eu não matei

Não, eu não dormi com a mulher do meu primo

Nego, eu não suspirei pelo filho do teu genro

Como outrora, a químico, a escrita trespassada para outro lado

Do papel se chamava negativo

Nego o que na igreja se afirma

Ao contrário, renego a mentira, não quero a hipocrisia

Nunca se cruzam as mãos, nunca

Tudo ao contrário, como na confissão

E então a lua de chifres na frente

Aqueles dois cornos imensos

A enrolarem-se de luz nas sombras da Floresta Negra Curitibana

Ladrava de noite entre as hastes esguias das acácias

Manchadas de branco como caiadas

Para curar as feridas

Minha Mãe, a Lua, meu Pai, o Sol,

Como podia eu morrer à vossa frente, neste fato negro de cima a baixo

A noite - meu P.'.M.'. - a Noite era eu, ali despida, e o balandrau atirado

Para o céu, fazendo nuvens, eu, morta, enterrada até às últimas letras

De uma estrofe interminável

Eterna

Lua

Diuturnamente assassinada

Como Hiram o foi um dia

E todas as noites ressurrecta

Dessa morte que para o neófito inexiste

Minha Lua Lua ó Lua quem és, Lua?

Lua, Lua sou eu.

 

 

De
Maria Estela Guedes
TRÍPTICO A SOLO
Organização e prólogo
Floriano Martins
Ilustrações Eduardo Eloy
São Paulo: Escrituras, 2007.
237 p.  (Coleção Ponte Velha)
ISBN  978-85-7531-269-8

Gentilmente enviado pela editora
www.escrituras.com.br

 

ERMIDA

Algures, por aqui, em tempos mais míticos
Do que reais,
Erigia-se uma pedra como um altar,
Uma pedra à moda de placa na estrada a
Identificar um lugar,
Uma pedra em louvor de Hermes, ou Ermes,
Uma pedra erma,
Ou herma,
A assinalar o melhor caminho, nas encruzilhadas,
Para o hermita chegar ao destino.
Por isso a hermida,
Ermita ou eremida..................................
Eu quero, tu queres, Lilith das calças frouxas,
Nós queremos um destino puxado para cima.
Que S. Guindaste nos acuda
Que Mercúrio nos levante nas asas
Que Hermes nos sopre por baixo nas calças
Para suuuubiiiirmos, tipo balão soooobe,
Baalão soobe...........................
A veeeeeeeeeeeerrr
De muuuximmnniiiniiiiiiiiiiiiiiiiiiiiilil-o loooonnnge
Desaparecerem da Terra
Todos os pessoais e colectivos problemas.

 

 

 

Curitiba, 9.08.2005 /Britiande, 19.10.2005; página ampliada e republicada em janeiro de 2011 

 



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