MANUEL ALEGRE
Poeta e político português, considerado uma das vozes mais importantes da poesia contemporânea de Portugal.
O primeiro soneto do Português Errante
Eu sou o solitário o estrangeirado
o que tem uma pátria que já foi
e a que não é. Eu sou o exilado
de um país que não há e que me dói.
Sou o ausente mesmo se presente
o sedentário que partiu em viagem
eu sou o inconformado o renitente
o que ficando fica de passagem.
Eu sou o que pertence a um só lugar
perdido como o grego em outra ilíada.
Eu sou este partir este ficar.
E a nau que me levou não voltará.
Eu sou talvez o último lusíada
em demanda do porto que não há.
Extraído de POESIA SEMPRE, revista da Fundação Biblioteca Nacional, Número 26, Ano 14, 2009, dedicada quase que exclusivamente à poesia portuguesa contemporânea, uma antologia organizada por Arnaldo Saraiva.
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ILHA DE COS
Eu sabia que tinha de haver um sítio
Onde o humano e o divino se tocassem
Não propriamente a terra do sagrado
Mas uma terra para o homem e para os deuses
Feitos à sua imagem e semelhança
Um lugar de harmonia
Com sua tragédia é certo
Mas onde a luz incita à busca da verdade
E onde o homem não tem outros limites
Senão os da sua própria liberdade
Chegar aqui. Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1984
AS MÃOS
Com mãos se faz a paz se faz guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
ALEGRE, Manuel. Sonetos do Obscuro Quê. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993. 81 p. 13,4x20,5 cm. ISBN 972-20-1155-3“ Manuel Alegre “ Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação família Marly de Oliveira.”
FERNANDO PESSOA
Vem ver o meu país que já
não tem Camões nem Ìndias para achar
só tem Pessoa e o império que não há
sentado à mesa como em alto mar.
A viagem que faz é só por dentro
e escreviver-se a única aventura.
No pensamento é que lhe dá o vento
ele é sozinho uma literatura.
Eis a vida vidinha cega e surda
ditadura do não do só do pouco.
Ser homem (diz Pessoa) é ser-se louco.
Heterónimo de si na hora absurda
viajando no sentir escreve sentado.
E é Pessoa: “futuro do passado”.
OBSCURO QUÊ
O que fica afinal do outro lado
se acaso o universo for finito?
Espaço nenhum. País incomeçado.
Obscuro quê: vocábulo interdito.
Dizer ao invés o nunca nomeado
nome que nem sequer pode ser dito.
Talvez então o fim e o acabado
no limite onde tudo será escrito.
Mas cuidado com advérbios e com verbos
os cérberos espreitam e os soberbos
adjectivos que guardam o indizível.
E vê lá não disponhas do avesso
as letras de princípio o de começo.
Nem escrevas nunca o verso irreversível.
Página em construção. Março 2008; ampliada e republicada em outubro de 2009, página ampliada e republicada em abril de 2015 |