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JOÃO NEGREIROS
João Negreiros, poeta, ator, cantor, encenador, 'diseur', nasceu em Matosinhos, tem 38 anos, tem 13 livros editados.
O PRISMA DE MUITAS CORES. Poesia de Amor portuguesa e brasileira. Organização Victor Oliveira Mateus. Prefácio Antônio Carlos Cortes. Capa Julio Cunha. Fafe: Amarante: Labirinto, 2010 207 p. Ex. bibl. Antonio Miranda
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As paredes desta casa já viram tudo
o sono
a fome
e um tambor perdido no meio da batalha
viram inquilinos fugir à pressa e a treva que os ladrões
trouxeram
as bulhas que desaguaram em carícias
as portas que bateram por conta do vento e as janelas que
partiram por conta de nada
mas cada vez que um vinha e entrava dava a todos esta
morada
e o correio trazia para o mesmo destinatário as cartas de amor
de quem já não mora aqui
e eu não quero saber
abro-as e leio-as como se fossem minhas como se fossem tuas e violo-lhes a correspondência como se fosses tu
esqueço a letra e os erros de ortografia e imagino que me
escreves todos os dias
e quando perguntam se mora aqui a dona augusta
eu digo que sim que sou eu
e o senhor Gustavo?
sim sou eu
o doutor Américo?
é o meu pai
a dona Lourdes?
é a minha mãe
a Maria de Fátima?
é minha filha
e o correio não faz perguntas porque sabe que não se deve
perguntar nada a um homem apaixonado
e então faço de conta que os nomes sou eu
tapo o remetente imagino-te o nome e abro-a para sentir o
teu perfume
e a carta começa assim
excelentíssimo senhor e eu traduzo para meu querido
e depois continua com
venho por este meio e eu traduzo para amo-te mais que a
vida
e a carta do tribunal com aviso de recepção do homem que
morava aqui e que não pagava a renda é
a prova inequívoca de que me amas
todo aquele papaguear jurídico são longas descrições do país
exótico onde vives exilada
é por isso que não podes vir
é por isso que não podes escrever não te deixam
por isso escreves em código na pena dos que partiram
com cartas de tribunal e contas da luz antigas para me alumiar
a esperança pedindo-me que espere
e sempre que o telefone toca e é engano és tu
quando o galho comprido da árvore do vizinho bate na janela
és tu
quando buzinam na rua és tu
quando as crianças cantam lá fora é para te anunciar
eu sei não tardas estás para chegar
e quando chegares vais pedir desculpa pelo atraso
e vais dizer que fomos feitos um para o outro e que a vida
agora vai correr bem
e vais ser linda e dar-me beijos quentes como um abafo para
as orelhas
e vamos viver nesta casa um perpétuo amor uma vida perfeita sem nada que nos interrompa
e quando o carteiro chegar e fizer perguntas
dizemos que a dona Augusta não sou eu
dizemos que o senhor Gustavo não sou eu
que o doutor Américo era o meu pai mas morreu
que a dona Lourdes era minha mãe mas também se foi logo a
seguir com o desgosto
que a Maria de Fátima a minha pequenina de um casamento
antigo foi com a mãe para a Suíça
e que aqui moramos nós
sem história
sem família
sem passado
nesta paz que não existe
neste amor que nunca foi mas que é para sempre
***
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Página publicada em janeiro de 2021
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