JOSÉ LUIS PEIXOTO
José Luís Peixoto nasceu em Galveias, Alto Alentejo, no centro-sul de Portugal, em 1974. Já publicou sete livros de ficção e três de poesia, tendo obra editada em França, Itália, Bulgária, Turquia, Finlândia, Holanda, Espanha, República Checa, Croácia e Bielo-Rússia, além do Brasil.
Obra poética: A Criança em Ruínas (2001); A Casa, a Escuridão (2002); Gaveta de papéis (2008). Site do escritor: www.joseluispeixoto.net
Não há motivo para te importunar a meio da noite,
como não há leite no frigorífico, nem um limite
traçado para a solidão doméstica.
Tudo desaparece. Nada desaparece. Tudo desaparece
antes de ser dito e tu queres dormir descansada. Tens
direito a um subsídio de paz.
Se eu escrever um poema, esse não é motivo para te
importunar. Eu escrevo muitos poemas e tu trabalhas
de manhã cedo.
Toda a gente sabe que a noite é longa. Não tenho o
o direito de telefonar para te dizer isso, apesar dessa
evidência me matar agora.
E morro, mas não morro. Se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste? Se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são?
Ou não atendias. E eu ficava aqui. Com a noite ainda
mais comprida, com a insónia, com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.
Criança em Ruínas:
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
Ouro Preto na voz da minha mãe
ouro preto. Desço ruas e, por baixo dos passos,
um caminho da minha terra: a memória da voz
limpa, fonte, branca, claridade,
a minha mãe
a minha mãe de encontro a uma parede branca:
vai sempre ao rés da parede, filho.
ouro preto. estendo um braço para tocar a última
igreja antes do céu.
ouro preto. acabei de nascer no meio da praça.
a minha mãe
a minha mãe cansada diz-me:
esta é a tua terra, filho.
ouro preto. chego pela primeira vez aonde
sempre estive.
Obs. O último poema foi extraído da obra O ACHAMENTO DE PORTUGAL. Wilmar Silva, org. Belo Horizonte: Anome Livros, 2005. 112 p.
Página publicada em novembro de 2008
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