JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Nasceu a 13 de Fevereiro de 1951 em Santa Catarina (Caldas da Rainha). Frequentou o Instituto Comercial de Lisboa e o Instituto Britânico. É juiz social no Tribunal de Menores desde 1993. É jornalista – carteira profissional nº 4149. Colaborador das RDP-Açores desde 2002 e redactor da Revista «Ler», estreou-se no «Diário Popular» em 1978 e em «A Bola» em 1979. Colabora no mensário «Voz de Alcobaça» com a coluna «O lugar do poema» e no semanário «Gazeta das Caldas» com a rubrica semanal «Um livro por semana» e a coluna quinzenal «Estrada de Macadame».
Organizou duas antologias para o Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas: «O Trabalho – antologia poética» e «O Desporto na Poesia Portuguesa». É co-autor do livro «Glória e vida de três gigantes» sobre o Sporting, o Benfica e o F.C.Porto, editado em 1995 por «A Bola».
É autor dos seguintes livros: «Iniciais» (1981), «Universário» (1982), «Transporte Sentimental» (1987), «Jogos Olímpicos» (1988), «1983 – Um resumo» (1991), «Leme de luz» (1993), «Mesa dos Extravagantes» (1997), «As emboscadas do esquecimento» (1999), «De súbito (2001), «Os guarda-redes morrem ao Domingo» (2002), «O Saco do Adeus» (2003), «Pedro Barbosa, Jesus Correia, Vítor Damas e outros retratos» (2005) e «Mansões Abandonadas» (2007). «Iniciais» venceu em 1980 o prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores atribuído por um júri constituído por Armando Silva Carvalho, Fernando J.B. Martinho e Pedro Támen.
Em 2006 foi publicada uma versão da tese de mestrado de Ruy Ventura («José do Carmo Francisco - uma aproximação») nos 25 anos da sua obra poética. O Júri (Clara Rocha, Silvina Rodrigues Lopes e António Cândido Franco) atribuiu à tese («Representações da Memória e do Quotidiano na poesia de José do Carmo Francisco») a classificação de «Bom com distinção». O poema «Café contigo» está gravado num CD de José Cid. O Jornal «ABC» de 15-11-2008 dedicou-lhe uma página no seu Suplemento Cultural.
( Página indicada por NICOLAU SAIÃO )
ATÉ ESSE MOMENTO
Lembrarás então o pai aqui sentado
A máquina de escrever no chão
Os discos na parede entre a luz e o pó
Irão passar talvez muitos anos
Farás promessas que não vais cumprir
E dirás ruas para voltar noutras horas
Será como quem percorre um caminho
Iluminado pela luz do teu olhar
À procura das palavras subterrâneas
Lembrarás então o pai aqui sentado
Um gelado presente do indicativo
E silencioso que não fala – não esquece
Passarás nas tuas mãos um fio
Será talvez a memória das noites
O tempo do leite e das fraldas
Será como quem procura descobrir
Nos desenhos (nos cadernos escolares)
Uma outra maneira – a tua outra voz
Lembrarás então o pai aqui sentado
Não como pai mas como anónima pessoa
Surpresa a esperar no céu do outono
Terás nas tuas mãos um retrato
O voo das aves por cima da casa
Como inesperada vírgula do tempo
Será como quem procura fragmentos
Num momento ou talvez num lugar
Na tua idade como um portão aberto
CEMISTÉRIO
Aqui se fixam as diferenças
até na morte como mercadoria.
Dinheiro em pedra nos jazigos;
campas pobres só com a terra
– por detrás dos muros, prédios,
vozes, gente que faz barulho
e estende roupa para este sol.
Pode chegar-se aqui de “táxi”
ou também de autocarro.
Nas flores mais secas
se vai perdendo a luz.
Outras memórias, palavras,
São o lixo deste dia.
Um tempo para dizer este tempo
quando o relógio se cansa
e perde os ponteiros do coração,
um tempo para lembrar
as flores tão verdadeiras
num frasco de tofina bem lavado.
Outras facturas, outro dinheiro
se perdem nesta morte a prazo.
Morre-se também na tarde,
perguntando sempre à morte
qual a diferença de luz
entre o mármore e a terra.
Uma noite em Junho
Soube sempre
mesmo sem perceber
que o som da tua voz
era múltiplo e cheio
como um cavalinho
numa marcha de Lisboa.
Primeiro clara
como a trompete
quando diz onde começa
e onde termina a melodia.
Depois alegre
como o clarinete
quando se eleva e proclama
as notas do teu sorriso.
A seguir cinzenta
como o bombardino
quando sublinha o escuro
e a hesitação do teu olhar.
Outras vezes pausada
como o contrabaixo
quando vai a sincopar
as palavras cansadas.
E também satisfeita
como o saxofone
quando disserta à volta
duma história pitoresca.
Por fim ritmada
como a caixa
quando a pressa de chegar
te faz ir na rua tão veloz.
Soube sempre
mesmo sem perceber
que o som da tua voz
era múltiplo e cheio
como um cavalinho
numa marcha de Lisboa.
Foi preciso
saber esperar
uma noite em Junho
no desfile da Avenida
para descobrir
todas as razões.
MENINA 25 ANOS DEPOIS
Vem do lado da luz e faz um vagaroso intervalo na pressa do trânsito, tão veloz e tão compacto.
É um tempo novo que os seus olhos abrem no que resta da manhã: a cidade tinha uns taipais de névoa e foi a sua força que os rompeu. Barcos aflitos apitaram no Tejo o desassossego da rota duvidosa.
São estes os paradoxos do Tempo: quem procure o seu bilhete de identidade achará cifras e datas, uma cronologia pesada. Porém, nem a voz nem o olhar nem o corpo solto e leve se conjugam com o tempo registado. E a luz, aquilo a que chamo luz, mistura de respiração e olhar, retrato e volume, ruptura e movimento, essa continua a iluminar quem dela, mulher-menina, se aproxima. Tal como há vinte e cinco anos ela transporta as quatro estações na voz, os dias da semana no olhar, os meses no rosto, as horas nas mãos.
É o tempo condensado de uma viagem entre o campo e a cidade.
Celeiro de emoções, adega de perfumes, eira de saudades, sótão de memórias, a sua voz é, ainda hoje, o registo pessoal da luz da aldeia contra a névoa da cidade.
Rosa Luz
Há uma rosa a arder. Já não é lume
Apenas foco de luz sem combustão
No fósforo mal aceso deste ciúme
Só sobejaram os sinais da tua mão
A tua boca foi o botão anunciado
Os teus dedos o que ficou da haste
Procurei a tua voz em todo o lado
Mas foi na rosa ardida que ficaste
BILHETE NO BOLSO
Às vezes está tão longe
Às vezes está mais perto
Fala e ninguém o ouve
Como telefone no deserto
Vai dar uma longa volta
Pode morrer e não morre
Com um bilhete no bolso
Anda a pé, viaja e corre
Apanha a chuva dos outros
Porque é poeta concreto
Suja as mãos fica na rua
E desenha um ângulo recto
Traz às costas uma dor
Sem peso nem dimensão
Com um bilhete no bolso
Já não ouve o coração
Faz os poemas devagar
Num forno feito de fogo
Que nasce da combustão
Duma voz fora de jogo
Defende sem bem saber
Justos contra tiranos
Com um bilhete no bolso
Anda assim há muitos anos
Um quase nada lhe chega
Para o que vai sonhar
Um futuro sem a morte
Em todo e qualquer lugar
Escondido na multidão
Atravessa as ruas só
Com um bilhete no bolso
Há-de voltar para o pó
ALEXEI BUENO NAS ESCADINHAS DO DUQUE
Tinha que ser escritor este bandeirante
Nome herói de romance em homenagem
Assim a Rússia já não fica tão distante
Numa vida que é também uma viagem
Nas Escadinhas do Duque é rei à mesa
Dá lições de poesia em breve seminário
Entre cerveja e amendoim nasce a beleza
Da Poesia que o Mundo vê ao contrário
Somos poucos aqui um grupo acantonado
Na mesa posta por D. Rosa na sexta-feira
Viajamos num bacalhau bem temperado
Pelo azeite tão puro e leve duma oliveira
No Camões a mulher feia vende cocada
Desesperam por um visto os brasileiros
Que pena a vida não poder ficar parada
Aqui onde os poemas nascem inteiros
De
José do Carmo Francisco
MANSÕES ABANDONADAS
Organização Floriano Martins
Prólogo Nicolau Saião
Ilustrações Sérgio Lucena
São Paulo: Escrituras, 2007.
142 p. ISBN 978-85-7531-268-1
SESIMBRA EM JULHO
Uma mulher vem do mar.
Mudou a roupa
Mudou o sorriso
Mudou a vida
De quem na praia
A viu passar.
Viajou num barco
Depois na camioneta
A tempo ainda de trocar
O vestido pela t-shirt
E pêlos pequenos calções.
Trouxe da cidade
Um sorriso resignado
Os resultados do dia
E as sombras das ruas
Nas suas mãos abertas.
Uma mulher vem do mar.
Quando vem do mar
Inaugura a alegria
De quem na areia
A vê passar atenta
Ao movimento da água.
Ela traz a promessa
Sempre nova da vida
Na água do olhar
Nos lábios líquidos
Na voz que reúne e amplia.
Ela atravessou a tarde
Mas não voltou ao lugar
Onde o poema se desenha
Breve como a luz na areia
Longo como o som das ondas.
Uma mulher vem do mar...
FRANCISCO, José do Carmo. Mesa dos Extravagantes. Santarém, Portugal: O Mirante, 1996. 80 p. 13x20 cm. (Doação de Oleg Almeida)
CESÁRIO CEM ANOS DEPOIS
Ainda lá está- na Rua dos Fanqueiros
Ao fim da tarde à porta do estabelecimento
As pessoas são mais- é maior o movimento
Mas na rua há cada vez menos calceteiros
Ainda lá está na casa em Linda a Pastora
A partir pinhões por uma tarde inteira
Ou no horizonte da velha vaca leiteira
A descobrir várzeas, povoações, estrada fora
Ainda lá está no som da sua velha flauta
Que cantou como ninguém a Dor e a Vida
E deixou para nós uma nota não preenchida
No lugar mais difícil das linhas da pauta.
PEQUENA ELEGIA PARA MARIA FERNANDA
Como se fosse preciso dizer:
— Este rosto não está à venda.
Há vinte e quatro anos já repartia
no espaço do trabalho a atenção
entre a coragem diária semeada
e a amizade sempre sem medida.
Como se fosse preciso dizer:
— Esta voz não está à venda.
Porque os seus olhos atravessaram
o tempo do ódio e do medo
e não se deixaram iludir
pelos sinais exteriores da morte.
Como se fosse preciso dizer:
— Esta amizade não se despede.
Solenemente entre pressa e sombras
na alegre circulação de nomes fiéis
alcancei a verdade à flor da voz que diz:
— Ela vai ter sempre a idade da manhã.
POR ESTE RIO ACIMA
A subir o rio
num barco alugado
vejo o teu lugar
não está ocupado
Debaixo da ponte
já longe do mar
entramos na terra
a festa do olhar.
Num velho moinho
parámos e eu vi
as marés antigas
chegaram aqui.
Mais acima curvamos
e chegamos à margem
o mestre do barco
faz a meia viagem.
O tempo parou
no barco e no rio
voltamos atrás
a lembrar o vazio.
Página publicada em maio de 2009; página ampliada e republicada em janeiro de 2010. Ampliada em abril de 2017.
|