Fonte: www.fcsh.unl.pt/forum/leitorados/coloquio.htm
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
Poeta de tantos títulos e editor de tantas obras, encontro José Carlos de Vasconcelos na 26ª Feira do Livro de Brasília em companhia de nosso amigo Victor Alegria, entre outros admiradores. Depois nos encontramos na sede da Biblioteca Nacional de Brasilia — ainda em seu processo complexo de instalação no prédio concebido pelo arquiteto Oscar Niemeyer em plena Esplanada dos Ministérios – para uma longa conversa, entre perguntas e comentários. Antes de partir, deixou-me um exemplar de um de seus livros com a dedicatória:
A António Miranda, agradecendo-lhe os livros e a visita à”sua” Biblioteca Nacional, com os votos de que tudo se venha a realizar conforme os seus sonhos de homem de cultura e poeta, com estima e o abraço de
JOSÉ CARLOS DE VANCONCELOS, Brasília, 6/9/07”
Escolho, do precioso livro, desses feitos para palpar, espreitar e cheirar, os poemas seguintes, metapoemáticos, tão sutis mas tão profundos, com a tessitura fina de arabescos verbais, para selar a ântese de uma amizade transoceânica, intergaláctica ou internética. Antonio miranda
REPÓRTER DO CORAÇÃO
com uma pintura de Graça Morais
Porto: ASA, 2004
(seleção de poemas)
OS VERSOS GUARDADOS
Tímido previdente avaro
guardei os versos
ano após ano
como lençóis de seda fina
ou anel de noivado
como guarda o pobre
as migalhas que não come
como guarda a menina
a boneca antiga
Tímido previdente avaro
guardei os versos
ano após ano
pelo tempo fora
o tempo todo
caminhando descalço
sobre um rio
de lume
ou lodo
AUTO DE FÉ
são palavras e palavras antigas
que seguramente me foram caras
ou mais ainda me foram queridas
vivi com elas idas madrugadas
então minhas companheiras constantes
e mais amadas e amantes amigas
branca e fiel música dos instantes
aves livres no ramo das cantigas
são palavras e palavras caídas
jovens como folhas primaveris
nos passeios de grandes avenidas
mas há um cheiro bom que ainda exala
de suas letras e me faz feliz
ardendo vivas no fogão da sala
O POEMA DO CANIVETE SUÍÇO
“O poema é antes de tudo um inutensílio”
Manoel de Barros
E no entanto, Manoel, eu uso-o de nuvem,
faca, canário amarelo, escova de dentes,
papel de embrulho, rio sem foz,
búzio adejante,
chave de fendas, manteiga, mel.
Em vez de canivete suíço, o mais completo,
uso poema, Manoel, teu antes de tudo inutensílio,
poema todo serviço, remédio santo
contra dor, resfriado, picada de insecto,
poema pedra, ponte, rouxinol,
vento, veia, vício vário,
árvore no deserto, relógio de sol,
joelho feminino para um triste solitário.
À BEIRA DO PRECIPÍCIO
O lado secreto do evidente.
O que vê qualquer um e afinal não.
Tudo que está entre nós e nós cegos:
a luz do lugar, da visão, comum.
Trazer à tona, à tela, essa luz,
essa invisível poderosa teia,
janela que nos rodeia e seduz.
Eis, pois, meu ofício: salvar a rosa.
Salvar, raça em extinção, a baleia.
O poema à beira do precipício.
A TRAPEZISTA VOADORA
Rasga a abóbada celeste do circo.
Fica a noite suspensa de seu alto
e ousado gesto absoluto. Tremo,
deslumbrado, entre silêncio e salto,
entre barra e pulso, amor e medo,
raiz e fruto. O corpo de gata
e lantejoulas rápidas, sereno,
flutua no espaço e arrebata
meu coração aflito, olhar e sexo.
É luz, lume, nuvem, deusa, acrobata?
Ou gata no cio num céu sem nexo?
Flor de lótus ou lis? Astro secreto?
Voo seu voo veloz, for exacta,
concisa como um verso no soneto.
VASCONCELOS, José Carlos de. Corpo de esperança. Coimbra: Cancioneiro Vértice, 1964. 70 p. 15,5x22 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
«ENTRE SEMEAR E COLHER»
Ao Waldemar
Entre semear e colher,
montanhas compactas, sólidas, de sangue e terror,
garantem que o fruto é sadio,
que não roem os bichos seu ventre de amor
— e acabará por viver.
Entre a musical pequena nascente
e o verde caudaloso rio,
longos séculos, anónimos, de sede e luta,
dizem que o minúsculo fio
de água desaguou
no coração de toda a gente.
Entre o verde caudaloso rio
e a claríssima secreta ponte,
milhões de mãos obreiras,
corajosamente, pedra a pedra,
erguem já o suado horizonte,
enfim diurnas, humanas, inteiras.
«PENETREMOS O CORPO IMACULADO
DAS PALAVRAS»
Penetremos o corpo imaculado das palavras,
esse corpo de frescura incontida,
de sílabas constantemente renovadas,
esse corpo sempre à medida
de fúrias soalheiras e colinas orvalhadas.
Penetremos esse corpo,
por dele fervorosos, nos penetrarmos,
até nos doer na carne, sorrir na alma,
correr nas veias, e completos, inquietos,
felizes, nos magoarmos.
Esse corpo de mulher,
diferente cada hora, mais jovem
cada dia,
onde há sempre qualquer
coisa como um beijo, uma saudade,
uma promessa que se anuncia.
Esse corpo de ternura das frases maternais,
dos amantes no trabalho e nos jardins,
de pedreiros, camponeses, carpinteiros,
moças ceifando nos trigais
— esse corpo de angústias secretas,
esse barro obscuro moldado por pescadores
e por poetas.
Penetremos o corpo imaculado das palavras,
respeitosa, consciente, apaixonadamente,
não pelo prazer animal
de o desflorar,
mas para vencermos
injustiça, ódio, silêncio, solidão
— pela urgente precisão
de cantar.
Página publicada em setembro de 2007. Ampliada e republicada em julho de 2015. |